Histórias líricas de um lugar que não existe mais

As mulheres palestinas para além da visão orientalista foi tema de live do Firminas com Soraya Misleh

Atualizado em 16/03/21 às 22:08

Sâmia Teixeira e Soraya Misleh em live para o Portal Firminas

“Meu pai contava que quando era criança, judeus, mulçumanos e cristãos brincavam juntos. Sem rótulos. Na aldeia onde ele vivia não existiam trancas nas portas, casamento era festa para aldeia inteira. Essa é a Palestina onde meu pai nasceu, essa era a Palestina histórica e é essa a Palestina dos nossos sonhos, essa é a Palestina pela qual nós lutamos”.

As memórias e as palavras compartilhadas são de Soraya Misleh, escritora e ativista pró-palestina, autora do livro Al Nakba – Um Estudo Sobre a Catástrofe Palestina, entrevistada no Facebook do Portal Firminas, no dia 4 de março, por Sâmia Teixeira, editora Internacional. Apesar de se ver como um grão de areia em meio a toda luta, seu relato potente representa a situação de mais de 5 milhões de palestinos refugiados em diferentes pontos do mundo.

O bate-papo fez parte de um ciclo de lives realizado com o objetivo de promover o lançamento do Portal Firminas, liderado por um coletivo de mulheres e jornalistas dispostas a entregar notícias e informação com um recorte feminista. 

Al Naqba –  a catástrofe palestina

Soraya dividiu por cerca de uma hora sua experiência como mulher palestina impedida de nascer em sua própria terra. Ela é filha de sobreviventes da Al Naqba – palavra árabe que significa catástrofe e designa o êxodo palestino que ocorreu a partir de 1948, quando mais de 700 mil pessoas foram expulsas ou obrigadas a fugir de suas terras em razão de uma limpeza étnica e colonização. Posteriormente, seguiu-se a questão palestina, que continua sem uma resolução – considerada justa para os povos daquela região – até os dias atuais .

Desde então, Soraya dedica parte da sua existência como mulher a lutar pelo direito de pertencer e não ter sua identidade apagada. Segundo ela, é essa a realidade dos palestinos que vivem as consequências de uma limpeza étnica iniciada como um  projeto colonial sionista que objetivava constituir um Estado judeu homogêneo. 

“Manter a minha identidade é parte dessa resistência, contar a história dos meus pais é resistência”, mesmo que, como ela diz, essas histórias sejam líricas de um lugar que não existe mais.

Orientalismo

Além de fazer parte de uma população fragmentada, impedida de se encontrar em sua própria terra, há ainda um olhar orientalista que paira fortemente sobre o Oriente Médio e o norte da África. Um processo recheado de estereótipos que coloca toda uma população sob um estigma de violência, de mulheres subjugadas, sem diversidade de classe e de religião. 

“É um oriente inventado e o feminismo liberal acaba comprando essa ideia”, alertou a ativista.  Ela aponta ainda para o fato de que  existe diversidade na Palestina. “Claro que também há uma opressão machista. Mas a opressão não é pelo contexto árabe, pelo lugar onde as pessoas nasceram ou pela cultura. É por uma dominação imperialista contra a qual mulheres estão lutando historicamente.”

Uma herança de resistência da mulher palestina

Após listar diversas lutas vividas por mulheres palestinas desde 1903, houve a lembrança de que ainda há muitas mulheres na linha de frente, sendo a vanguarda da resistência na Palestina de hoje. “E elas dizem que se inspiram nas histórias de outras mulheres que vêm desde o fim do século 19”, explica. 

Soraya também pontuou que em um levante ocorrido em 2015, mulheres eram 40% das militantes que estavam nas ruas. “Elas ainda precisam resistir às prisões administrativas – que mantêm em cárcere pessoas sem qualquer tipo de crime”. Na mira estão as ativistas que mais se destacam nesse cenário, como Khitam Saafim, presidente da União dos Comitês de Mulheres Palestinas, presa em sua própria casa em novembro de 2020. 

Os relatos da live mostraram que a resistência das mulheres palestinas também se faz na vida diária, no cotidiano, no ato de trabalhar, de lutar pelo direito de chegar nas escolas ou de se ter um filho na maternidade. De acordo com Soraya, dados da ONU mostraram que mais de 70 mulheres grávidas fora impedidas de chegar aos hospitais porque não conseguiram passar pelos checkpoints israelenses. “Se para os palestinos a situação já é dramática, imagine o que é essa situação para uma mulher.”

Regime de apartheid que segue matando

Palestinos estão separados nas regiões de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental – Foto: reprodução Google Maps

Uma contextualização sobre o atual momento da Palestina também foi feita pela entrevistada que explicou que, após uma limpeza étnica, Israel ocupou 78% da Palestina histórica. A população que ainda conseguiu permanecer ficou dividida nos territórios da  Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental, onde “precisa conviver diariamente com muros que impedem a circulação, racionamento de água, destruição de casas, bombardeios e até mesmo a falta de acesso a hospitais.”

A pandemia do Coronavírus Covid-19 também se tornou um outro grande desafio. Apesar de Israel estar sendo reconhecido como o país que mais vacinou, proporcionalmente, a sua população, o mesmo não acontece com os palestinos que estão enfrentando dificuldades para ter acesso à imunização. “A pandemia virou mais uma arma na limpeza étnica”, opinou Soraya.  

Os relatos provenientes do bate-papo entre Sâmia e Soraya renderam diversas manifestações emocionadas nos comentários feitos pelas participantes que assistiram à live. O desejo por justiça ganhou eco e Soraya reforçou que “a Palestina está em todo lugar. Em todo o mundo, a gente sempre vai encontrar uma casa palestina. Mas o que todos esperam é por justiça, que só vai existir por meio da criação de um Estado palestino único, laico e com direito de retorno de todos refugiados. Uma Palestina livre do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo!”

Assista à live completa no Facebook

Confira a cobertura das outras lives de lançamento das Firminas

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*Na primeira versão colocamos que 70% de mulheres grávidas foram impedidas de chegar à maternidade. O correto é 70 mulheres grávidas.

*Na primeira versão, usamos o termo guerra civil e conflito para denominar os problemas enfrentados pelos palestinos. Os termos foram substituídos por limpeza étnica e colonização, pois correspondem ao que foi explicado por Soraya.

*O termo conflito árabe-israelense foi substituído por questão palestina para corresponder ao que foi explicado por Soraya.

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