Doutora Albertina: “Saúde é trabalho, é educação, é renda, é respeito aos direitos, é cidadania”

Doutora Albertina aparece em close com a bandeira do Brasil ao fundo
Doutora Albertina Duarte Takiuti – Foto: arquivo pessoal

Doutora Albertina Duarte Takiuti é médica ginecologista, obstetra e sanitarista. Participou da construção do SUS, atua no Hospital das Clínicas (HC) diariamente e já perdeu as contas de quantos partos fez.

É coordenadora do Programa de Políticas Públicas pela Mulher da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo e é também coordenadora do Programa da Saúde do Adolescente da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, onde colhe o resultado prá lá de positivo de redução de 55% no número de casos de gravidez na adolescência, nos últimos 20 anos, no estado de São Paulo.

Firminas – Dra. Albertina, a senhora participou da formatação e lançamento do SUS e hoje atua em um dos maiores hospitais públicos da América Latina, o Hospital das Clínicas. A senhora acredita que a mulher tem acesso a todos os serviços em saúde que necessita, gratuitamente?

Dra. Albertina – Ao me formar, eu vivi a experiência de atuar antes do SUS. As pessoas que eram privilegiadas e tinham emprego, eram atendidas nas chamadas “caixas” oferecidas pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, por exemplo. Depois desse período, vi as pessoas que contribuíam ser atendidas pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e que foi extinto em 1993.

O SUS promove a equidade, o acesso universal de todas as pessoas à saúde – sejam imigrantes ou mulheres e homens com ou sem emprego. Sua criação foi um movimento de extrema força e na sua concepção é o melhor sistema de saúde do mundo. Sua criação reuniu pessoas que tinham as melhores experiências em saúde de outros países. A formatação do SUS reuniu a nossa utopia em saúde. Como diz o jornalista Eduardo Galeano, a utopia está no horizonte (“Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu caminhar dez passos, ela ficará dez passos mais longe”).

Mas nós temos o caminho, que é fundamental, temos acesso à saúde e suas especificações em todas as fases da vida, temos acesso a processo de fertilização, a cirurgias extremamente complexas; as oncológicas fora do SUS são muito caras, acesso a medicamentos de alto custo, tudo isso seria inimaginável quando me formei. Eu não poderia imaginar ver uma lei que preconiza a cirurgia de restauração de mama em uma mulher mastectomizada.

Sim, falta muito, ainda é uma utopia na sua essência. Jamais poderia imaginar ver o Hospital das Clínicas oferecer uma gama de possibilidades, recebendo médicos de outros países para fazer estágio, que vem aprender conosco. Temos o Hospital Pérola Byington, que é referência em saúde feminina. A mulher tem sim acesso, mas é necessário que sejam garantidos todas os serviços que foram assinados em convenções, como sobre a gravidez na adolescência, da redução da mortalidade materna, da redução do feminicídio e violência contra a mulher.

Essa é a pauta que temos que cobrar de todos os gestores do país. Sem o SUS, a desgraça de termos quase 280 mil mortes por Covid-19 poderia ser muito maior. Eu só vou me aposentar quando morrer e até lá vou lutar para que o desenho do SUS seja totalmente implantado – afinal, saúde é trabalho, é educação, é renda, é respeito aos direitos, é cidadania e tudo isso temos o direito de ter garantido pela Constituição, entre a lei e a ação é que precisamos trabalhar.

“O país que tem o machismo exacerbado é pobre culturalmente, socialmente e em direitos.”

Firminas – A pandemia impôs uma série de restrições a todos nós. A senhora acredita que a mulher está sofrendo mais nesse momento?

Dra. Albertina – Tenho certeza dessa realidade. Os indicadores internacionais mostram que, por exemplo, os serviços de saúde voltados às mulheres estação mais escassos. Há pesquisas que apontam que 47 milhões de mulheres no mundo terão filhos sem nenhum planejamento, cerca de 18 milhões de adolescentes serão mães porque não tiveram acesso aos métodos contraceptivos, porque os profissionais não estão disponíveis, porque os serviços não estão disponíveis e porque as jovens deixaram de ir até o serviço, tudo por causa da pandemia.

Nesse momento, as mulheres têm muito mais que tripla jornada, são mães, trabalhadoras, cuidam da educação dos filhos, administram a pouca renda e cuidam da estabilidade da família. Essa sobrecarga está provocando o aumento de casos de ansiedade e depressão, gerando falência física por estresse, o que causa distúrbios menstruais, com alta incidência de cólicas e menopausa precoce; manifestações que surgem em ocasiões de colapsos sociais, como em guerras.

Exames rotineiros, como mamografia e Papa Nicolau estão sendo adiados. Simone de Beauvoir já disse que “em tempos de crise política, econômica e religiosa os direitos das mulheres sejam questionados”.

Temos denúncias de 105 mil registros de mulheres que sofreram violência e 2020 no Brasil

Firminas – A senhora sempre atuou em defesa da mulher, já se posicionou em relação à violência contra a mulher, foi uma grande voz de apoio no caso da menina de dez anos violentada pelo tio, que engravidou e fez aborto. Como a senhora acredita que atualmente a mulher pode transpor os obstáculos que a sociedade machista impõe?

Dra. Albertina – Eu aprendo sempre com a voz das mulheres, com o movimento das mulheres. Essas vozes que me chegam aos ouvidos, esses olhares que me contam coisas e esses corpos que vejo todos os dias, me fazem entender, cada vez mais, a minha missão que por meio do meu conhecimento, que fui privilegiada em tê-lo. Posso aliar conhecimento médico, que é importantíssimo, com a atuação em políticas públicas.

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A transformação no direito à saúde coletiva é o grande passo da minha vida. Temos denúncias de 105 mil registros de mulheres que sofreram violência em 2020 no Brasil. E aquelas que estão em casa, submissas, ameaçadas, sem renda, sem direitos, que perderam seus empregos, violentadas psicologicamente e que estão na fase do “tapinha” ou do soco, são as que ainda não morreram e não fizeram denúncia, são incontáveis.

Temos a vacina contra a Covid-19, a união é a vacina contra a violência e a descriminação. Isso não é papel de cientistas, é papel de toda a sociedade, com todos os sindicatos, todos os partidos, todas as associações de classe…temos que estar mobilizados para que o país cumpra as suas convenções em relação aos direitos das mulheres e à erradicação da violência contra a mulher. E que o não cumprimento seja punido.

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Dra. Albertina Duarte Takiuti- Foto: arquivo pessoal

Doutora Albertina fala sobre machismo e gravidez na adolescência

Firminas – A senhora trabalha há mais de 30 anos na prevenção à gravidez na adolescência. A senhora acredita que o machismo estrutural da sociedade brasileira influencia nesse problema?

Dra. Albertina – Foi muito importante entender, lá no início dos estudos com adolescentes, que a mulher tinha muito medo de não agradar e o home de falhar. O machismo está construído em um propósito no qual o homem se concentra: o ato de vencer, inclusive na atividade sexual. E a mulher, com a ideia de que tem a obrigação de agradar, acaba com sua autoestima e autocuidado.

Nós conseguimos reduzir em 55% a gravidez na adolescência nos últimos 20 anos, no Estado de São Paulo, um feito que nenhum país do mundo conseguiu. A falta de educação dos meninos, faz com que eles não percebam a coparticipação e, assim, não querem usar o preservativo; traz a falta de responsabilidade no papel de pais…traduzindo: a culpa é da mulher adolescente que não se preveniu.

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O medo que ela tem de não agradar faz com que ela não reivindique essa igualdade de responsabilidades. O machismo foi construído socialmente, a desconstrução tem que acontecer desde o nascimento do menino, desde o berço e nas escolas. É por isso que eu defendo roda de conversa nas escolas, nos serviços de saúde e na família. O país que tem o machismo exacerbado é pobre culturalmente, socialmente e em direitos.

Firminas – Em se falando de planejamento familiar, falta informação ou popularização dos métodos contraceptivos?

Dra. Albertina – Falta, sim, conhecimento sobre todos os métodos. É preciso destruir mitos e tabus, como por exemplo, o mito de que anticoncepcional engorda. Não se conhece métodos de longa duração, os reversíveis e não se sabe qual é o método melhor para as mulheres. Para garantir o uso, além da informação, é preciso a negociação. As adolescentes, muitas, têm a informação, mas falta sentir que ela pode negociar com o parceiro o seu direito ao uso.

O planejamento familiar traz a dupla proteção, que evita a gravidez e a IST/DST (Infecção Sexualmente Transmissível/Doença Sexualmente Transmissível). A saúde reprodutiva não se resume a uma receita de anticoncepcional, mas exige ações continuadas de educação, de avaliação e de compromisso.

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