No aguardo por nova versão, PL do Conto de Aia poderia ser contestado no STF

Texto original do senador Eduardo Girão poderia ser contestado em instâncias superiores por infringir legislação sobre aborto legal
Foto Marcelo Camargo – Agência Brasil

Alvo de críticas tanto dos movimentos feministas quanto de especialistas na área de direitos reprodutivos, o Projeto de Lei 5435/2020, batizado de “PL do Conto de Aia”, deve receber uma nova versão da relatora Simone Tebet (MDB-MS). Tais mudanças podem evitar questionamentos em instâncias superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF), visto que o texto original do senador Eduardo Girão (Podemos-CE) interferia na legislação vigente sobre aborto legal: estupro, risco de morte da gestante e anencefalia.

“Após controle concentrado de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal poderia vir a declarar a inconstitucionalidade do dispositivo no que tange ao aborto até então legalmente previsto”, afirma a bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, Mellina Gerhardt. 

Consultamos a especialista sobre os principais pontos jurídicos do PL 5435/2020:

Firminas: Um Projeto de Lei pode superar a Constituição? No caso, a proposta é pôr a salvo a vida da criança por nascer desde a concepção.
Mellina: Não. Dentro do nosso ordenamento jurídico a Constituição Federal é a lei suprema e, assim sendo, nenhuma outra norma denominada infraconstitucional pode se opor a ela. Havendo conflito entre a Constituição e o conteúdo de uma norma infraconstitucional, aquela deve sempre prevalecer. 

F: Caso o PL não possa interferir nesta questão, então ele seria inconstitucional?
M: Não necessariamente. Para uma norma ser considerada materialmente inconstitucional, o seu conteúdo deve afrontar, contrariar a Constituição. No caso do aborto, o que se tem é um embate entre direitos fundamentais, todos previstos na Constituição: direito à vida do nascituro versus o direito à liberdade e autonomia reprodutiva da mulher e a dignidade da pessoa humana da gestante.  

F: Caso aprovado e sancionado, o PL como está hoje permite inferir que realmente o serviço de aborto legal em caso de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia podem não ocorrer mais? Por quê?
M: Formalmente e em um primeiro momento poderia se dizer que sim, diante do conteúdo do seu texto original. Após controle concentrado de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal poderia vir a declarar a inconstitucionalidade do dispositivo no que tange ao aborto até então legalmente previsto. 

F: Visto que a Constituição Federal também prevê a dignidade humana e direitos iguais, projetos como este não ferem a autonomia individual ao regular a gestação e vida das mulheres?
M: Sem dúvida. Novamente entra em cena a busca por um equilíbrio entre os direitos fundamentais à vida do nascituro e os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a autonomia, igualdade, integridade física e psíquica da gestante.

F: É legal o PL propor uma bolsa-estupro? No caso, fala-se em um salário-mínimo por 18 anos. Esse tipo de apoio do Estado é constitucional?
M: Neste primeiro momento, pode-se dizer que, da forma como está posto no Projeto de Lei, o conteúdo da norma seria ilegal uma vez que não especifica qual a fonte de custeio para pagamento do auxílio e qual órgão seria responsável pelo pagamento, em contrariedade ao que prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal. 

F: Quais são os principais riscos penais do PL?
M: Caso o PL venha a ser aprovado em seu texto original, a principal consequência, em um primeiro momento, seria a criminalização do aborto sem exceções, com a exclusão das causas de descriminalização já previstas.

F: Qual é o entendimento legal sobre o início da vida? Na biologia há diferentes vertentes de pensamento. Há alguma/as no direito?
M: Há, ainda, algumas posições divergentes sobre o início da vida no âmbito jurídico. O Supremo Tribunal Federal, desde o julgamento da ADIN 3510, definiu que a vida inicia-se com a nidação, ou seja, com a implantação eficaz do zigoto (ou ovo) no útero da mulher.

F: Até 2000 se um estuprador assumisse a criança, ele estava livre de responder pelo crime. Com esse PL, há brechas para que isso volte a ser possível?
M: Não. A tipificação do crime de estupro é independente de eventual alteração que venha a ocorrer na tipificação do crime de aborto. Caso um indivíduo venha a “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, responderá pelo crime de estupro, independentemente se do estupro resultar gestação e se nessa gestação o estuprador vier a assumir a criança.

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