Quebra de patentes: a polêmica proposta para acelerar vacinação e zerar mortes

Hoje só a vacinação pode conter a pandemia do novo coronavírus, mas para isso ela precisa ser em massa, acontecer em todo o mundo e de modo rápido. Qual o melhor caminho para isso? Está na mesa a chamada quebra ou flexibilização das patentes para vacinas, medicamentos e insumos, um debate complexo e com doses fortes de ideologia e “leis” de mercado
Coronavírus pelo mundo – Imagem: Depositophotos

Brasil, com média de 3 mil mortes/dia, está no centro de uma pandemia com previsão de acabar em longos sete anos, de acordo com a calculadora da Bloomberg, se mantido o ritmo atual de vacinação no mundo. O detalhe: isso vale para países pobres e menos pobres, porque os países mais ricos devem alcançar suas metas de vacinação entre este ano e o início de 2022, pelos cálculos da mesma ferramenta, o Vaccine Tracker.

Acontece que ninguém aguenta esperar mais. O mundo clama por mais vacinas e não tem como responder a isso sem debater a quebra de patentes dos imunizantes, “uma decisão que pode multiplicar a produção da vacina e impedir mais mortes pelo mundo”, defende a deputada federal Alice Portugal (PCdoB Bahia), que é bioquímica e farmacêutica.

Na semana que o Brasil teve recorde diário de mortes por Covid, o assunto esteve em pauta no Congresso Nacional.  Na Câmara, por iniciativa de Alice Portugal e outros 16 deputados de sete partidos (PCdoB, PDT, PP, PT, MDB, PSB e Republicanos), foi realizada uma reunião em 8/4 para ouvir especialistas e cobrar esclarecimentos sobre o posicionamento do Brasil em relação à quebra de patentes nas discussões em curso tanto na OMC (Organização Mundial do Comércio) quanto na OMS (Organização Mundial da Saúde).

Estado de emergência sanitária

No dia anterior, em 7/04, o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (DEM-MG), logo no início da sessão, tirou o Projeto de Lei n° 12, de 2021 da pauta de votações, atendendo um apelo dos governistas. O PL 12/21, apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS) estabelece a quebra de patentes de vacinas, testes de diagnóstico e medicamentos de eficácia comprovada contra a covid-19 de modo que o Brasil fique livre para produzir esses itens, sem observância dos direitos de propriedade industrial, enquanto vigorar o estado de emergência sanitária.

O texto do projeto segue a linha da proposta feita pela Índia à OMS, com apoio de países em desenvolvimento, porém, até o momento, o Brasil é a única nação em desenvolvimento que se opôs à quebra de patentes de imunizantes contra a covid-19 no âmbito da OMC e isso tem inviabilizado um acordo internacional.

Apartheid de vacinas

Arline Arcuri: Vacina como bem da humanidade.

Enquanto uma em cada quatro pessoas já foi vacinada nos países ricos, essa taxa é de 1 para 500 nos países pobres. Os EUA celebram a distribuição de 150 milhões de doses de vacina para sua população e 86 países ainda não receberam uma única dose. Essa situação é insustentável.

“A vacina deveria ser considerada um bem para a humanidade, já que protege a vida. Mas para as indústrias farmacêuticas o lucro vem antes da vida e as vacinas custam caro. Isso faz com que se tenha essa situação de apartheid de vacinas no mundo. Se houvesse a quebra de patentes, as vacinas seriam produzidas em quantidade muito maior e muito mais baratas. A própria OMS poderia comprar parte delas para distribuir para os países mais carentes de recursos financeiros”, pontua Arline Arcuri, doutora em ciências na área de físico química pela USP e pesquisadora na área de saúde e segurança dos trabalhadores.

Arline explica que o desenvolvimento de um medicamento ou uma vacina, em geral, tem um custo bastante elevado, por isso o laboratório registra uma patente que garante a ele a possiblidade exclusiva de fabricação do produto. Ela destaca que a quebra de patentes das vacinas já poderia ter acontecido no início da pandemia, mas não acredita que isso ocorra a curto prazo. “A quebra só virá, se vier, depois que as atuais fabricantes já tiverem tido o lucro que julgarem apropriado. Mesmo laboratórios estatais como o Butantã e Fiocruz não podem repassar o processo de fabricação porque assinaram um compromisso com os laboratórios que desenvolveram as vacinas”.

Até as vacinas chegarem, enfatiza a pesquisadora, seria necessário, além das medidas de cuidado pessoal, decretar um enérgico lockdown para evitar a propagação do vírus. “Mas isso só seria possível em um governo que governasse para a população toda e não só para o capital e um grupinho de fanáticos, que ainda apoiam este desgoverno, apesar de todas as evidências dos crimes que ele vem cometendo”.

Resistência das gigantes farmacêuticas

A resistência da indústria farmacêutica à proposta de quebra de patentes é tão gigante quanto seus negócios e não é difícil entender o motivo: desenvolvimento de vacinas e medicamentos demandam muito dinheiro e é preciso muita excelência para conseguir vacinas contra a COVID-19 em tempo tão curto. Mas nesse argumento deveriam pesar dois fatores: o grande montante de investimento de dinheiro público nessas pesquisas e a gravidade que a pandemia está tomando com o surgimento das novas cepas.

Médico Pneumologista Alfredo Leite – print de vídeo

“O desenvolvimento rápido das vacinas foi um feito histórico da ciência  e a propriedade intelectual precisa ser protegida. Mas é preciso acelerar a vacinação, sob pena da humanidade perder todo o ganho obtido com a rapidez no desenvolvimento das vacinas”, afirmou o médico pneumologista Alfredo Leite, do Hospital Oswaldo Cruz da Universidade de Pernambuco, na reunião da Câmara dos Deputados. Para ele, a tragédia nacional que estamos vivendo mostra a mudança na faixa etária dos pacientes e de quem vai à óbito após a imunização dos idosos, tragédia que poderia ser evitada se todas as faixas etárias estivessem sendo vacinadas.

Parque industrial despreparado

Para o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, a quebra de patentes, ainda que temporária, atrapalharia mais do que ajudaria o Brasil neste momento. Na mesma audiência do Senado que tirou da pauta o PL do senador Paulo Paim, Dimas argumentou que a dificuldade do Brasil em conseguir mais doses não tem relação com a quebra ou não de patentes, mas com a estrutura do setor industrial brasileiro, e manifestou temor de retaliação das farmacêuticas.

“Não seria uma forma oportuna e poderia trazer dificuldades para as próprias patentes nacionais, que existem”, disse. “A melhor alternativa, hoje, é rever a estrutura do setor industrial brasileiro. Não temos acompanhado os desenvolvimentos da biotecnologia no mundo. Somos um país retardatário”, criticou, conforme reportagem do site Metrópoles.

Senador Paulo Paim (PT-RS): vacina para todos já!

O senador Paulo Paim (PT-RS) discorda. “Será que o mundo todo está errado e somente os poderosos [governos e laboratórios] é que estão certos? O Parlamento Europeu já tem mais de 300 assinaturas de apoio à quebra de patentes, a OMS e os Médicos Sem Fronteiras também apoiam, artistas internacionais estão em campanha, ganhadores do Oscar, Sharon Stone, George Clooney, entre outros, pedem quebra de patentes já, vacinas para todos já”, afirmou.

Como nós queremos que a sociedade viva e continue?

Firminas foi ouvir o que o médico sanitarista, ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina pensa sobre a quebra de patentes. Para ele, mundo é um pouco mais complexo do que a gente imagina. “Colocando os pés do chão, quebrar as patentes é um caminho muito longo”, disse.

Vecina explica que o artigo 71 da lei de propriedade intelectual brasileira  permite o licenciamento compulsório de uma patente pela emergência sanitária, porém o que está depositado no INPI não é suficiente para produzir o produto, é preciso fazer a engenharia reversa e o detentor só vai entregar a patente mediante um acordo de pagamento de royalties, como o Butantan e a Fiocruz fizeram com a Sinovac e a Oxford-AstraZeneca. “Fizeram uma encomenda tecnológica e pela transferência de tecnologia vão fazer algum pagamento de royalties, como aconteceu com o Instituto Butantan e a Sanofi Pasteur em relação à vacina da gripe, que hoje é produzida no Brasil pelo Butantan”, prossegue.

Gonzalo Vecina: quebra de patentes é um caminho longo

“Eu não tenho dúvida de que qualquer medicamento, não só as vacinas, deve ser entendido como bem da humanidade, mas, enquanto nós vivermos num sistema capitalista, tudo vai ter um preço, inclusive a vida humana, faz parte do pacote. Nós temos que pensar no pacote: como nós queremos que a sociedade viva e continue? Essa é a pergunta a ser respondida, não adianta só em tempos de pandemia discutir o pedaço da vacina, não vai dar certo”, conclui.

Tagged: