A nada excitante fila da esperança por políticas de soberania alimentar

Inflação de alimentos e a fome
Pacotes de arroz, feijão e óleo de soja
September 11, 2020, Brazil

Em 1980, Carlos Drummond de Andrade escrevia em versos a preocupação com o desabastecimento de um item tão básico do prato do povo brasileiro. Em A excitante fila do feijão, Drummond não declama apenas a exaltação do grão leguminoso, mas apresenta uma crítica social de um duro período na história do país.

“O feijão é de todos, em princípio,

tal como a liberdade, o amor, o ar.

Mas há que conquistá-lo a teus irmãos.”

Como conquistar o feijão e incluí-lo no carrinho de supermercado? A pergunta continua sendo bastante atual. Nos últimos 12 meses, de acordo com o INPC-IBGE, o feijão carioca acumulou alta de 22,08% e o feijão preto ficou 51,09% mais salgado. Para prepará-lo, utiliza-se o óleo de soja que acumulou crescimento de 81,94% – maior variação de toda a cesta de produtos – e em sua companhia o arroz que ficou mais caro 62,92%.

O feijão não é para todos. Os itens básicos não são para todos. Em março, o custo da cesta básica de alimentos, calculada pelo DIEESE, na cidade de São Paulo, foi de R$ 626,00, elevação de 20,73% no último ano. Este valor equivale a 56,9% do salário mínimo vigente. Em janeiro de 2019, início do Governo Bolsonaro, a cesta básica equivalia a 46,0% do salário mínimo, ou seja, o poder de compra do trabalhador ficou ainda mais comprometido.

Mas qual é o motivo desta carestia? O Brasil, país do “agro é tech, agro é pop, agro é tudo” tem privilegiado o mercado externo em detrimento da soberania alimentar. Ahhhh, os superávites da balança comercial… A exportação de feijão comum cresceu 4,6% entre 2019 e 2020, já a exportação do arroz cresceu 36,7% no mesmo período. Em relação à soja, somos o maior produtor e exportador mundial. O Brasil possui autossuficiência nestes itens e qualquer alegação relacionada ao aumento da demanda interna, parece, no mínimo, ultrajante. A repressão por bens alimentícios significa fome.

Evidente que há vários elementos a serem tratados. Há de se considerar a histórica concentração fundiária, a centralização da cadeia produtiva cooptada por grandes corporações internacionais, a concentração dos produtores de insumos e a financeirização do mercado. Questões estruturais que interferem diretamente no nosso cotidiano. 

Por ora, contudo, vale ressaltar a importância do papel do Estado. Como o Estado pode intervir? “Feijão! Feijão, ao menos um tiquinho!”. Drummond, já na década de 1980, menciona, embora com certo desdém, um ator fundamental.

Caldinho de feijão para as crianças…

Feijoada, essa não: é sonho puro,

mas um feijão modesto e camarada

que lembre os tempos tão desmoronados

em que ele florescia atrás da casa

sem o olho normativo da Cobal.

O poeta não inclui uma estrofe sobre a forte migração ocorrida no país, sobre o inchaço nas cidades e os problemas sociais que vão além do espaço para florescer grãos atrás da casa. Mas citou a  Cobal, Companhia Brasileira de Alimentos, criada durante o Governo Jango, em 1962, que tinha por objetivo promover o abastecimento de alimentos básicos com a comercialização a preços populares, atendendo, especialmente, famílias de baixa renda nas grandes metrópoles.

https://www.eunahistoria.com/2018/05/cobal-o-mercado-volante.html

Em 1991, se funde a mais duas empresas públicas, a Companhia de Financiamento da Produção (CFP) e Cibrazem (Companhia Brasileira de Armazenamento), criando a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento).  O enxugamento de estruturas com fechamento de unidades armazenadoras, de abastecimento e de comercialização e a redução do corpo técnico, caracterizou-se pelo início do desmonte das políticas públicas de segurança alimentar.

Ainda assim, a Conab pode ter papel protagonista para garantir comida no prato da população. Dentre seus principais compromissos estão subsidiar estudos e pesquisas no campo da agropecuária,  bem como a formulação e execução de programas e ações preferenciais; a garantia da renda ao produtor rural, a garantia da segurança alimentar e nutricional e a regularidade do abastecimento. 

Há vários mecanismos que podem ser utilizados no curto prazo. Os estoques reguladores têm como função conter a inflação e garantir o abastecimento aos consumidores, ao passo que, para o produtor, devem manter a estabilidade econômica dos preços para cobrir custos de produção.  O objetivo da Conab não está associado ao lucro, porém aos resultados sociais.  

O Estado não pode apenas governar para manter os interesses de uma elite agropecuária. Políticas macroeconômicas também devem estar na mira estratégica tanto em relação ao câmbio;  juros via linhas de financiamento que incentive a diversidade da produção agrícola; e fiscal que pode, inclusive, sobretaxar exportações ou reduzir e, até mesmo, isentar impostos sobre importações prioritária .

O que o Estado não pode, é fazer o povo padecer, ofertar um auxílio emergencial que é incapaz de assegurar a aquisição de alimentos básicos ou mesmo se guiar por um congelamento de gastos que está paralisando a vida das pessoas.  Nossa “espera esperança” extrapola dez horas. Uma espera esperança de mais 20 meses até o fim deste mandato genocida?

Larga, poeta, o verso comedido,

a paz do teu jardim vocabular,

e vai sofrer na fila do feijão.

Sem verso, sem jardim e sem feijão.  Até quando o sofrimento, meu caro Drummond.

Rosângela Vieira
Rosângela Vieira é mestre em Economia Política pela PUC SP e atua em assessoria sindical. Apreciadora da arte, escreve versos e gosta de criar playlists temáticas.

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