Cobrança pela volta às aulas presenciais expõe precarização do magistério

Principal função da escola é educar, mas professoras são cobradas a cuidar dos alunos- Foto: Freepik

Com as escolas fechadas por causa da pandemia, quem vai cuidar das nossas crianças? A pergunta, repetida exaustivamente pelos movimentos que pedem a volta às aulas presenciais mesmo diante da maior crise sanitária enfrentada pelo Brasil, expõe o machismo estrutural que toma conta da educação brasileira desde que a profissão docente passou por um processo de feminização ainda na primeira metade do século 20.

Mesmo diante da morte de 378 mil pessoas no país por Covid-19, alguns pais, mães, empresários e governantes ainda defendem que as escolas – onde a maioria das trabalhadoras são mulheres – funcionem com atendimento presencial para que crianças e adolescentes recebam cuidados enquanto seus familiares trabalham.

As palavras expõem uma confusão sobre o papel primordial da educação. Meire Moreno, mãe da Amanda e da Joana, professora da rede estadual de ensino do Paraná e doutoranda em Sociologia pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), esclarece que a escola, ao contrário do que parece, não é uma extensão da casa e, portanto, não pode ser a responsável apenas por cuidar. “É o local destinado a promover a socialização e oferecer às crianças e adolescentes os conhecimentos científicos e saberes relevantes para entenderem melhor o contexto onde vivem”, defende.

Cuidar x ensinar

A pesquisadora pondera que a pandemia reforçou a confusão entre os objetivos das políticas educacionais e das políticas de assistência social. A essas últimas, caberia a responsabilidade de ofertar às famílias as condições de cuidar das crianças neste momento em que o isolamento social se faz necessário para salvar vidas. À escola, cabe o papel da educação formal. 

“Eu também sou mãe. Gostaria que as políticas públicas de assistência olhassem para a necessidade de diminuir a carga horária de trabalho e o peso que nos atinge durante a pandemia, principalmente das mulheres mães, trabalhadoras e periféricas”, pondera.

Vocação “natural”

O que se vê, porém, é uma imposição cada vez maior da responsabilidade de cuidar às escolas e, consequentemente, às professoras. A explicação para essa inversão de valores remonta ao final do século 19, quando a presença das mulheres no professorado ganhou força até elas se tornarem maioria na carreira, na segunda metade do século 20. 

A ideia vigente ainda hoje é que as mulheres teriam uma capacidade “natural” de cuidar de crianças graças ao “instinto materno”. Por isso, passaram a encontrar oportunidades nas instituições de ensino, entendidas como um prolongamento do ambiente doméstico e onde trabalham profissionais que estariam ali por supostos altruísmo e vocação. “Não é à toa que ouvimos expressões como ‘professores trabalham por amor’, uma ideia que impõe a crença de que não precisamos receber o equivalente ao que trabalhamos. Isso não é verdade, pois trabalhamos para pagar nossas contas e para sobreviver”, critica a doutoranda, destacando que o resultado da feminização da profissão é a precarização da atividade docente.

Tal desvalorização reflete as estruturas patriarcais da sociedade, que se sustentam a partir das relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres, por meio de um processo de opressão e dominação a partir das diferenças sexuais e que até hoje produz e reproduz desigualdades. “Não deixaria de ser diferente na escola e nem durante a pandemia”, lamenta ela, que espera dos governos a posição de assumir a responsabilidade sobre o cuidado com as crianças. “As aulas só devem retornar à modalidade presencial quando houver garantia de segurança e vacina para todos”, afirma. 

Professoras não são mães dos alunos

Carol Valente é jornalista, pedagoga, professora de inglês e mãe solo da Elis. Depois de enfrentar adoecimento emocional por causa do trabalho em uma escola particular no litoral de São Paulo, ela hoje dá aulas de inglês para mulheres adultas. Mesmo enfrentando as incertezas impostas pela pandemia, em nome da própria saúde mental ela não pensa em voltar às salas de aula. “Não vale a pena, pois ganhamos pouco e somos exploradas, tanto no setor público como no privado”, avalia. 

Carol Valente desistiu da sala de aula para preservar a saúde mental – Foto: arquivo pessoal

Durante o tempo em que trabalhou em uma escola particular atendendo alunos do quarto ano, ela sentiu o peso de ser a responsável por “cuidar” dos alunos além do que se espera na escola. “Havia uma cobrança para que eu fosse ‘mãe’ das crianças. Muitos passavam a noite jogando, chegavam na escola usando a mesma roupa por três dias, os pais sequer olhavam as mochilas, os cuidados com os filhos eram totalmente terceirizados. Professor não é pai nem mãe, está na escola para ensinar”, desabafa. 

A queixa de Carol faz coro à crítica de Meire Moreno sobre a terceirização dos cuidados. “São as professoras, muitas delas pretas, que precisarão estar à disposição para cuidar dos filhos das mulheres de classes mais abastadas em escolas particulares. Os professores têm feito um esforço imenso para atender com qualidade no ensino remoto pois sabem que é importante a construção dos saberes para o desenvolvimento das crianças e adolescentes. Mas o que temos visto é a cobrança pelo atendimento presencial por meio do viés do cuidado.” 

Adoecimento psíquico

A experiência exaustiva de assumir uma função diferente do que se espera do profissional da educação afetou a saúde mental de Carol. “Foi naquela época que precisei de ansiolítico pela primeira vez na vida.. Adoeci porque sou sensível, via que muitas crianças estavam pedindo socorro.  Me sentia frustrada porque não conseguia exercer o papel de educadora”, conta ela, que acabou pedindo demissão após um afastamento de 45 dias. 

Mesmo com críticas à romantização do empreendedorismo feminino e materno, ela acredita que está melhor trabalhando com autônoma porque tem liberdade para planejar os próprios horários e se afastou do ambiente escolar. “Após quase 20 anos, decidi atualizar meu TCC do curso de jornalismo, que foi sobre a luta antimanicomial, e adicionei um texto baseado em Paulo Freire e Foucault onde comparo as escolas aos manicômios. A meu ver, é um ambiente que pode adoecer crianças e profissionais”, lamenta ela, que também se solidariza com as professoras da filha neste momento de pandemia. “Há um descaso imenso tanto por parte do poder público como dos pais, que não têm noção das dificuldades que as profissionais do magistério enfrentam.”

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