Orgulho LGBTQIA+: “Resistência é a maior de todas as nossas qualidades”

No mês do Orgulho LGBTQIA+, uma conversa com Mel Campos, uma mulher trans, ativista, atriz e produtora cultural.

Mel Campos com vestido florido faz pose na rua de uma cidade antiga
Mel Campos. Foto: arquivo pessoal

Nascida em Londrina, no Paraná, Mel foi fundadora do coletivo Elity Trans, que desde 2012 trabalha em defesa dos direitos da população trans. Após nove anos trabalhando no teatro, Mel decide embarcar para a Itália no final de janeiro de 2020, pré-pandemia, para pedir sua dupla cidadania.

Todos lembramos do que foi o começo da pandemia na Itália e a escalada de contaminações e mortes, apavorando todo o mundo por longas semanas. Até 27 de junho deste ano, o país contabilizava 127 mil mortes e mais de 4,26 milhões de infectados por Covid-19.

A pandemia ainda não acabou, mas o processo da cidadania sim e desde dezembro Mel Campos é também uma cidadã italiana.

Firminas: Mel Campos é seu nome social?

Mel Campus: Meu nome social é Melissa Campos, mas sou muito conhecida como Mel Campus no meio artístico, principalmente no meio do teatro. Depois de 9 anos trabalhando com teatro, acabei deixando o palco e vim para cá concretizar o meu projeto de me reestabelecer na Itália.

Firminas: Por que Itália?

Mel Campus: Eu já morei em Milão em 2006 e sempre tive o desejo de voltar pra Itália para reencontrar minhas raízes , entender um pouco mais da origem da minha família e buscar outras oportunidades de qualidade de vida, pois no Brasil a vida da pessoa trans, travesti principalmente, é muito mais complicada,  falta oportunidades e não temos garantias de direitos.

Firminas: Como foi enfrentar a pandemia em outro país?

Mel Campus: Acredito que se eu estivesse no Brasil minha situação seria muito pior. Essa pandemia joga muito com o psicológico das pessoas, ela nos tira o direito da socialização. Então todos aqueles que têm seu trabalho relacionado com contato, com o corpo a corpo, acabam enfrentando uma série de problemas, acabam entrando em uma situação de vulnerabilidade muito maior. E isso afeta diretamente a população de travestis e transexuais que trabalha como garotas de programa.

Eu trabalho como escort, um formato diferente das meninas que estão nas ruas. Enquanto escorte, trabalho com anúncios de internet e recebo os clientes no meu apartamento. Os interessados me ligam, marcam um horário e vem até o meu apartamento, que oferece conforto, higiene e segurança e por isso o custo desse formato é muito maior. Nem todas as meninas conseguem trabalhar nesse formato escort, um formato mais, digamos assim,  “refinado”.

“Aqui tem um ditado que diz: ‘o filho chora e a mãe não vê’, porque a solidão é muito comum, a falta de uma rede solidária é muito comum, a falta de amigos e pessoas é muito comum aqui. É muito intrínseco e muito frequente na comunidade LGBT+.

Firminas: Você chegou a passar alguma dificuldade?

Mel Campus: Não, não senti dificuldades de trabalho, Mesmo com as restrições e os toques de recolher, eu ainda trabalhei bem, não passei necessidade em termos financeiros. Aqui essa atividade é muito lucrativa, principalmente para as escorts que oferecem esse tipo de conforto para os clientes.

Os que procuram esse serviço acabam optando pelo formato escorte para se sentirem mais seguros, mais higienizados. Muitos clientes ainda perguntam se é necessário continuar com a máscara. As pessoas estão bem condicionadas às medidas que a pandemia impôs à população em geral.

Firminas: O governo presta algum tipo de assistência, algo como o auxílio emergencial do Brasil?

Mel Campus: As que são italianas estão sendo subsidiadas pelo governo com uma ajuda mensal em torno de  400 a 500 euros mensais para alimentação básica e pagamento de aluguel. Então, as italianas são garantidas com esse direito que é um direito para todos os cidadãos italianos que têm residência há mais de dois anos na Itália. As meninas estrangeiras, que geralmente não tem documento ou estão em estado de ilegalidade, elas não têm essa ajuda, e ficam à mercê de uma série de problemas.

Firminas: Quem ampara essa população, a sociedade?  

Mel Campus: Eu vejo que alguns projetos aqui na Itália acontecem em prol dessa população. Eu recebi a ligação de uma ONG (Organização Não Governamental) de Bologna, oferecendo cesta básica, o que graças a Deus recusei e disse para oferecerem a outras pessoas, pois eu não estava precisando. Inclusive essa ONG ficou muito interessada em conhecer meu trabalho artístico, levá-lo para a população em Bologna.

Mas foi uma instituição em um ano e meio que ligou perguntando se eu precisava de alguma coisa. Aqui tem um ditado que diz: “o filho chora e a mãe não vê”, porque a solidão é muito comum, a falta de uma rede solidária é muito comum, a falta de amigos e pessoas é muito comum aqui. É muito intrínseco e muito frequente na comunidade LGBT+.

Firminas: Como avalia o enfrentamento da pandemia pelos italianos?

Mel Campus: A Itália foi o primeiro país depois da China a ser infetado, então houve um surto de histeria coletiva. A população tinha medo dessa doença, que era desconhecida, os representantes políticos não sabiam lidar com essa situação, então utilizaram a base da política italiana, que é repressão, terrorismo psíquico. No meu entender a maneira mais eficaz de se trabalhar na pandemia era criar estruturas nas quais a saúde fosse garantida, as pesquisas fossem mais avançadas e os protocolos para a vacinação fossem facilitados.

Um ano se passou até que a vacina fosse apresentada e aí a segunda dificuldade aqui foi o sistema adotado para a imunização, muito lento. A priorização também foi uma das questões adotadas para que a vacinação acontecesse: vacinação dos mais vulneráveis. Eu vejo que a população LGBT está sempre em último, né?! Porque nesse cenário, continuamos sendo os primeiros e primeiras a serem higienizados da sociedade.

“… quando um governo não honra com seus compromissos, com suas obrigações em relação à garantia de direitos a todos, sem distinção, acaba ficando o trabalho para a comunidade, para  a sociedade civil organizada…”

Firminas: Como vê a situação do Brasil?

Mel Campus: Eu fico comparando. Se aqui na Itália, com todos esses problemas, uma pessoa italiana tem seus direitos garantidos, imagino no Brasil onde a dificuldade estrutural é muito maior, onde a luta por direitos é tão intensa, como deve estar muito pior. Vi que o governo tratou a pandemia com banalização, então eu imagino o quanto a situação da população trans se intensificou em termos de falta de direitos. Eu não consigo definir a situação pois não estou vivendo no Brasil, mas deve ser muito pior visto que não existe nenhuma intenção do governo de garantir oportunidades ou de reverter esse quadro para que essas mulheres tenham oportunidades de trabalho, estudo, habitação, alimentação, direitos básicos que deveriam ser garantidos.

Mesmo em termos de violência, aqui na Itália a segurança é muito mais garantida, temos a discussão de gênero, temos leis com punição para crimes de LGTfobia, isso tudo não é invisibilizado como no Brasil.

Mas a questão de rede solidária aqui eu não vejo muito, vejo o Brasil muito mais organizado em termos de solidariedade.

Firminas: A solidariedade foi muito lembrada neste junho da Diversidade no Brasil.

Mel Campus: Eu penso que quando um governo não honra com seus compromissos, com suas obrigações em relação à garantia de direitos a todos, sem distinção, acaba ficando o trabalho para a comunidade, para  a sociedade civil organizada, para as instituições religiosas, que trabalham muito melhor a solidariedade. A solidariedade é necessária, mas a empatia para que haja a solidariedade também precisa ser lembrada. Sem empatia não tem solidariedade.

Em um país onde a invisibilidade é o maior fator para discriminação e de negação de direitos, um movimento como a Parada LGBT+ é necessária. Tradicionalmente a Parada conta uma história de luta, de reivindicação de direitos, de auto-organização da sociedade civil, mas até mesmo na Parada eu tenho que reconhecer que a letra T sempre foi a última a ser lembrada. A gente ainda tem a própria transfobia dentro do meio LGBT. Mas quando todos se unem enquanto Parada para reivindicar direitos ainda assim a força é maior.

Mel Campos com o passaporte italiano – Foto: arquivo pessoal

Firminas: O que espera para os próximos dias?

Mel Campus: Eu espero que a gente supere logo toda essa fase, que a vida volte ao normal como sempre deveria ser. Eu espero que assim como eu, todas nós tenhamos forças pra superar e avançar cada dia mais, porque nas lutas a gente acaba adquirindo maior resistência e a gente vai ter muita história para contar sobre esse momento.

Espero que a solidariedade, que a empatia, que dias melhores venham e que todas nós tenhamos vida longa, longa e com dignidade.

Eu costumo dizer que a gente precisa viver esses momentos um dia após o outro, resistindo, porque a resistência é a maior de todas as nossas qualidades. Nós resistimos a muitas coisas, a muitas negações, e continuamos sempre brilhantes, sempre intensos.

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