Quando o luto vira luta: familiares de vítimas da COVID buscam justiça

A assistente social Paola Falceta se viu em luto com a perda da sua mãe em março desse ano, vítima da COVID-19, contraída durante estadia hospitalar em decorrência de cirurgia cardiovascular. A história de Paola é a história de mais de mil brasileiros e brasileiras que perdem alguém querido todos os dias durante a pandemia, mergulhando na dor que é o luto. Mas o luto de Paola se tornou a luta de muitos, com a fundação da Associação de Vítimas da COVID (AVICO).

Paola, que é vice-presidente da AVICO, ressalta que, em vários momentos no seu luto, se sentiu desamparada. “Houve momentos em que eu, como assistente social, como mulher, que tenho muito forte essa questão do cuidado, me senti desamparada. Me senti invisibilizada diante da sociedade como um todo”, afirmou.

Paola Falceta assistente social. Foto: Alexandre C. Moreira

Ali, no momento de sofrimento, ela percebeu que precisava fazer alguma coisa, por isso decidiu iniciar a AVICO, junto ao amigo Gustavo Bernardes, que é presidente da entidade. “Foi nesse sentido que achei necessário abrir a AVICO para dizer: ‘olha, pessoal, vocês vivem numa bolha que não é a bolha de grande parte da população brasileira. Então acordem. A gente não está bem com o que está acontecendo, estamos sendo massacrados, violentados, abandonados à própria sorte’”, criticou.

Ela considera que a pandemia escancarou o machismo e a sobrecarga de tarefas que a mulher tem no Brasil, entre outras questões de desamparo pelo Estado. “As mulheres foram muito mais impactadas na pandemia, principalmente porque elas são grande parte da população, e principalmente em territórios periféricos elas são cuidadoras das famílias. Aquelas que puderam se manter como provedoras ainda tiveram acrescidas ao seu dia a dia outras responsabilidades como escola, saúde, cuidados com os familiares”, observou.

Vítimas da COVID-19

AVICO participa de vigília pelas vítimas da COVID. Foto cedida do acervo pessoal

Um pequeno grupo de 17 pessoas, cada uma com sua relação com a pandemia, começou a AVICO criando um perfil de Facebook. Em dois meses a entidade já aumentou para 115 associados, dos quais 64 são voluntários em grupos de apoio. Mais de 1500 pessoas se encontram na espera para serem entrevistadas e entrarem na entidade, para serem atendidos por algum dos serviços que ela oferece.

“A gente precisa profissionalizar a AVICO para poder receber doação, precisa de um CNPJ. E com isso conseguiremos contratar advogado, transformar essa ação em uma ação mais técnica possível, ainda que tenha cunho político, no sentido de defesa de direitos humanos. A AVICO jamais vai perder esse cunho político, porque o nosso principal objetivo é defender os direitos humanos”, definiu a vice-presidente Paola Falceta.

Todos os futuros associados passam por uma entrevista de avaliação para entender se serão encaminhados a grupos de apoio, se têm interesse em entrar com ações judiciais ou se querem se voluntariar. Os planos da entidade são de ampliar o apoio psicossocial dado àqueles que perderam alguém para a COVID, realizar parcerias com universidades em serviços de saúde e outras entidades.

Grupos de apoio

Atualmente a AVICO conta com seis grupos de apoio a pessoas enlutadas, formados por voluntários da psicologia, antropologia e serviço social. Cada grupo é acompanhado por dois profissionais.

“É um espaço de apoio, empatia, solidariedade, desabafo, acolhimento, mas também de consciência política. E esse grupo tem oito semanas com a mesma formação. Depois eles dão espaço para outras pessoas que também estão em sofrimento poderem participar”, explicou Paola.

Para ser voluntária, a pessoa interessada deverá preencher um formulário no site da AVICO. “Preferencialmente não colocamos como facilitador alguém que está em sofrimento. Esses psicólogos, antropólogos e assistentes sociais são pessoas que conheceram ou perderam alguém, mas não diretamente, então eles conseguem fazer essa mediação de uma forma mais profissional e efetiva para todo o grupo”, completou a assistente social.

Representação criminal contra Bolsonaro

Paola aponta que existem razões evidentes de crimes do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contra a saúde pública, como o comportamento reiteradamente negacionista nas mídias sociais e em declarações junto à mídia. “Ele nega a ciência, fez todo um trabalho contra a saúde pública brasileira, que está preconizada na Constituição. A política pública não foi desenhada, foi precarizada, sucateada, vilipendiada”, resumiu.

Paola e Gustavo participam de manifestação. Foto cedida de arquivo pessoal

A vice-presidente da AVICO acrescenta que o presidente teve tempo para se organizar e planejar um plano nacional de imunização, mas na opinião dela, houve falta de gestão de todo o processo. “Tudo que algum ministro técnico da saúde antes do [Eduardo] Pazuello tentou fazer Bolsonaro cortou e contribuiu para uma série de desrespeitos à legislação, principalmente em aglomerações, na parte de comunicação, de saúde. Não teve quase nada de campanha sobre vacina, ele é antivacina”, disse.

Em relação ao assunto, a AVICO decidiu que tomaria uma atitude. A entidade apresentou uma representação criminal junto à PGR (Procuradoria-Geral da República) pontuando os crimes contra a saúde pública cometidos por Bolsonaro e aguarda que ela seja acatada. “Ele boicotou o tempo inteiro a política de saúde pública. E em relação a isso acho que vai ser tranquilo e fácil criminalizá-lo”, acredita.

CPI da COVID

Sobre a CPI da COVID, Paola considera que a comissão está cumprindo seu papel, colocando em xeque questões de corrupção que até então não tinham sido mencionadas. “Nós falávamos da questão do negacionismo, da má gestão, da incompetência, da própria maldade de Bolsonaro e seus asseclas, mas não tinha algum subsídio sobre corrupção no governo. Agora tem”, afirmou.

Para Paola, a CPI mostrou que existem inclusive cientistas negacionistas no Brasil, o que é inaceitável. “Não é cientista, é o que se fazia no nazismo, fazia experimento criminoso contra a vida das pessoas a título de ser ciência e é mais ou menos o que estava acontecendo. A ciência é coletiva, baseada em fatos, em comprovação, em proporcionalidade de população e estudo”, explicou.

“Se nos chamassem para a CPI, iríamos sem problema nenhum. Ainda que saibamos que as perseguições poderiam ser bastante asseveradas a partir disso, porque sabemos que esse povo bolsonarista é completamente violento, criminoso e que persegue as pessoas, teríamos cuidado, mas iríamos sim”, finalizou.