Representatividade negra na ciência: é preciso muito mais

A presença de mulheres negras na ciência ainda é pequena, e Ana Bomtorin luta para que isso mude

Para Ana Bomtorin, pouco adianta a menina negra se ver representada na televisão se sua vida não lhe dá condições para estudar – Foto: Acervo Pessoal

Ela é doutora em Genética pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo com estágio na Sussex University, em Brighton, Inglaterra, e pós-doutora em Ecologia Química pela Universität Ulm, na Alemanha. Impressionou? Mas não para aí. Como nunca cansa de estudar, faz atualmente especialização em Educação em Direitos Humanos pelo Instituto Federal de São Paulo, além de ser empreendedora e pesquisadora na StartUp PanDNA Consultoria e Projetos Ltda. Aos 38 anos, Ana Bomtorin diz que não é hora de parar. “Sempre dá para expandir os horizontes e somar conhecimento ao que a gente já conhece”, afirma.

Junto a tudo isso, Ana tem uma causa muito importante, pela qual milita cotidianamente: a conquista de representatividade feminina negra na ciência. Segundo a pesquisadora, os últimos dados referentes à presença negra feminina na academia são de 2015 e 2017. Depois disso, as estatísticas focam na questão de gênero, deixando de lado a etnia. “Acho fundamental essa discussão, porque o número de mulheres nas universidades aumenta a cada dia, mas o número de negras é muito aquém do número de brancas. A quantidade de mulheres brancas que têm o ensino superior completo é o dobro das mulheres negras. Os dados que temos são defasados, porque os governos de direita e extrema-direita têm apagado essa questão das estatísticas. Com a política de cotas raciais criada em 2012 mais pessoas negras passaram a ter acesso à universidade, mas elas ainda são metade das brancas, tanto para homens quanto para mulheres”, observa.

Ana fala com profundo conhecimento do assunto. Egressa da escola pública, somente fez o último ano do Ensino Médio e cursinho em colégio particular. Formada em Biologia em 2006 Bióloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, ela era a única aluna negra da sala de aula. Na turma de seus veteranos, havia um negro. Depois dela, apenas uma negra, e no ano seguinte mais uma. “Estudei no período anterior à existência das cotas, então encontrar um aluno negro nas univerisades era coisa rara, e nem havia muita discussão onde eu estava sobre essa questão”, relembra.

Apesar disso, a pesquisadora afirma que, sendo bem “umbigôcentrica”, não teve grandes problemas no período, principalmente em relação aos seus professores. “Muito pelo contrário, minha orientadora e meu orientador me escolhiam para dar palestras no lugar deles, e se eu não podia ir eles apresentavam meus dados. Mas claro que havia algumas situações, tons de piadinha ou de objetificação, vindo de colegas”, ressalta.

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Xenofobia e machismo juntos no doutorado

Enquanto no Brasil Ana não teve problemas de preconceito no mundo acadêmico, foi na Inglaterra que ela sentiu a discriminação, durante seu doutorado-sanduíche. “Meu orientador era argentino, filho de espanhóis, e tinha muito preconceito com os não europeus. Ele pegava muito no meu pé, no de uma amiga mexicana, no de um rapaz que havia nascido em Moçambique e sido criado em Portugal, mas adorava sua aluna espanhola. Ele era bastante racista com a gente, me dizia que eu era muito boa de trabalhar em bancada, fazer o trabalho ‘físico’, mas não era cientista”, conta.

Palestrando no Instituto Serrapilheira, em 2019, no Rio de Janeiro – Foto Acervo Pessoal

Um dos momentos em que o preconceito foi totalmente escancarado aconteceu quando a bióloga foi convidada a dar uma palestra em Nova York num congresso sobre insetos sociais, como formigas e abelhas, na área de genética. “Ele ficou admirado por eu ser uma palestrante no meio de pessoas famosas e importantes. Fui muito elogiada pelos pesquisadores dos Estados Unidos, Israel e Alemanha. Ele não acreditava que eu era capaz e disse isso com todas as letras quando foi me dar a devolutiva antes de eu voltar para o Brasil. Mas a gente percebe que o problema não é conosco, mas com o outro, que é racista, misógino e etc.”, pondera.  

Representatividade feminina precisa ser acompanhada de mudanças

Ana Bomtorin falando em nome dos alunos do Instituto Federal de São Paulo, campus de Piracicaba, em defesa da educação pública

Com a pandemia do coronavírus o mundo todo tem visto mulheres se destacarem em pesquisas sobre o tema. No Brasil, nomes como os das médicas Margareth Dalcomo e Jurema Werneck, além da pesquisadora Natalia Pasternak, têm constantemente aparecido no noticiário sobre o assunto. Para Ana, a presença dessas mulheres na mídia é importante para mostrar às meninas que elas podem sim estar no mundo acadêmico, porém para que isso efetivamente ocorra é preciso que elas tenham condições de entrar nesse meio.

“Representatividade vazia não representa muita coisa. Claro que é muito importante essas mulheres estarem na televisão e em lugares de destaque, porque os estereótipos vão se modificando. Porém, os lugares de tomadas de decisão continuam sendo ocupados por homens ou mulheres brancas sem compromisso com o antirracismo, em combater a misoginia e o machismo”, destaca.

Para ela, é preciso que haja um debate na sociedade profundo que dê condições a essas meninas de chegarem ao mundo acadêmico. “Não adianta a menina ver a pesquisadora na televisão, achar que é capaz, e ao chegar na escola o brinquedo de menino é de montar, é um carrinho que ele tem de consertar, é um quebra-cabeça, e o dela é a panelinha”, critica.

Além disso, Ana lembra que dentro da própria casa muitas meninas negras assumem tantas responsabilidades que não lhes sobra tempo para o estudo. “Ela tem condições de não precisar trabalhar para ajudar a sustentar os irmãos mais novos? Ela pode não cuidar dos irmãos para a mãe trabalhar? Ela consegue levantar às 4 da manhã e pegar todos os transportes possíveis para chegar à universidade (que nunca é periférica, mas ela sim)? Ela tem condições de ter uma educação de qualidade na escola onde ela estuda?”, questiona.

Por tudo isso, Ana diz que muito além da representatividade sempre é importante lembrar dos caminhos que essas meninas terão de percorrer, para que as mudanças efetivamente ocorram. E dá um conselho àquelas que querem se dedicar às ciências. “Seja forte. Mantenha a cabeça erguida porque o machismo e o racismo existem em todos os lugares. Não é porque uma pessoa tem conhecimento que ela opta por não ser racista ou machista. Esteja sempre atenta, permaneça firme no seu propósito, e se permita também mudar seus caminhos se um dia desejar. Nada é para sempre nem estático, e nem precisa ser”, finaliza.  

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