Fala Firmina: Analfabetismo de perto

No centenário do maior educador brasileiro, Paulo Freire, a firmina Fernanda Pereira discorre suas lembranças que unem analfabetismo, opressão machista e conformismo social.

Essa história pode caber para muitas pessoas. A vivência da ferida social no Brasil.
Essa história pode caber para muitas pessoas. A vivência da ferida social no Brasil.

No dia do centenário do maior educador brasileiro, Paulo Freire, entre tantas homenagens universais que o celebra, me veio à lembrança de alguém próximo que une a opressão machista e conformismo social.

Tive uma avó que foi a primogênita de uma família de seis irmãos, Francisca, nasceu em 1914 com o seu gêmeo que morreu ainda bebê, depois os pais tiveram mais cinco mulheres e um filho. Apesar de viverem numa região do interior do nordeste, o pai dela sabia ler e escrever, mas não permitiu que a filha tivesse ensinamento escolar. Na verdade a história que sempre ouvi que ela não pôde aprender para não escrever “carta para namorado”. Precisava apenas aprender a cuidar da casa e da família.

Isso há menos de cem anos, na década de 1920. Ela casou ainda jovem, com um marido que sabia ler e escrever, embora não tenha estudado não passava sufoco em confiar nas pessoas para ser guiada pela oralidade ou imagens, das cédulas do dinheiro, por exemplo.

Fui sua neta tardia, cresci com a aceitação geral de que ela não sabia ler, mas era bem inteligente, se virava e ia para onde queria. Lembro que todos falavam que ela entregava as cartas de parentes em regiões distantes do local que morava no Rio de Janeiro, apenas com o endereço na cabeça. O velho dito “quem tem boca vai a Roma”.

Recordo que muitas vezes, quando a acompanhava ao supermercado todos tinham carinho pela vozinha, ela perguntava gentilmente quanto estava precificado (nos anos 80 e 90 os produtos tinham uma etiqueta minúscula com os valores, que mudavam semanalmente). Alegava que não enxergava direito. Assim, com boa memória guardava e fazia seus cálculos instintivamente, no final pagava e sabia o seu troco certo. Ninguém nem “notava” que ela não sabia ler, algo que ela também não contava ou assumia.

Aos 96 anos, teve que foi comprovar vida no banco. Vó Francisca foi ao banco e teve que assinar alguns documentos com o polegar. Fez o procedimento três vezes, em cada via. Comentou com o gerente: “é moço hoje escrevi foi muito”. Todos os que a acompanhavam riram de forma simpática.

Assim sempre utilizou a comunicação para amenizar a limitação, ainda que com uma alegria de viver e sabedoria nata. Hoje penso que se tivesse estudado teria ido bem a diante em alguma profissão e também conquistado muito mais. Na família, diante da idade avançada, do nosso respeito e afeto, muitos de nós nunca se prontificaram para ajudar ou incentivar que ela aprendesse. Dos nove filhos que gerou, todos aprenderam a ler e escrever, mas na idade adulta.

Essa história pode caber para muitas pessoas. A vivência da ferida social no Brasil. Existem milhares de brasileiros que estão nessa condição de analfabetismo.

Há alguns meses, estava na parte interna de um banco próximo de casa e observei um senhor com os seus cinquenta anos, bem vestido e com dificuldade em mexer no caixa eletrônico. Ouvi de um funcionário que ele sempre ia lá para pegar dinheiro ou pagamentos, demandava auxílio porque não sabia ler e escrever. Mais uma vez o analfabetismo se mostrou, e dessa vez em uma grande metrópole, em São Paulo.
A tecnologia em serviço é facilitadora para muitos, mas ainda há uma grande população desassistida porque não tiveram o acesso escolar.

Com a pandemia, além das políticas governamentais federais excludentes, há um gigante número de brasileiros que permanecem carentes do ensino básico. Muitas crianças estão sem poder estudar seja por falta de estrutura física (espaço, internet, ou energia elétrica), falta de professores, morte de familiares, ou responsáveis e tantas outras necessidades.

Por mais que se viva uma época devastadora, é fundamental homenagearmos e contar sobre a história de Paulo Freire, um pensador do povo, profissional que idealizou e na prática se dedicou intensamente para gerar novas oportunidades por meio da educação às pessoas. Estimulou para que muitos conseguissem enfrentar as dificuldades por meio do ensinamento e ideias que proporcionam lutar por melhores condições de vida. Uma voz que permanece com força e inspira tantos educadores do mundo inteiro.

Como disse Paulo Freire: “A alfabetização é mais do que saber ler e escrever. É a habilidade de ler o mundo”.

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