Veto de absorvente gratuito a estudantes, mulheres em vulnerabilidade e detentas agrava pobreza menstrual

Falta de condições de acesso a absorvente gratuito é uma das causas da chamada pobreza menstrual

Reportagem de Cecília França publicada originalmente por Rede Lume de Jornalistas

Você se lembra de quando menstruou pela primeira vez? Talvez tenha acontecido na rua, ou na escola. Talvez você já soubesse do que se tratava, talvez não. Pode ser que hoje você tome medicamento sem interrupção para impedir o fluxo. São muitas as realidades, mas uma coisa liga todas as pessoas com útero: elas menstruam. Não é vergonhoso, não é nojento, é natural. O tema, porém, ainda é cercado de tabus e os absorventes, e outros produtos contentores do fluxo, tidos como cosméticos.

A discussão sobre pobreza menstrual vem se ampliando nacionalmente e, em setembro, o Senado aprovou projeto de lei 4.968/2019, da deputada Marília Arraes (PT-PE), que previa a distribuição de absorventes para alunas de baixa renda de escolas públicas, mulheres em situação de rua ou extrema vulnerabilidade, mulheres e adolescentes privadas de liberdade. O item também se tornaria obrigatório nas cestas básicas distribuídas pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Mas o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) freou esse avanço no combate à pobreza menstrual vetando os artigos da lei que tratavam da distribuição. A medida foi publicada no Diário Oficial da União desta quinta-feira. Como argumento, diz que não foram especificadas as fontes de custeio para a compra dos produtos. O Coletivo Igualdade Menstrual, fundado em Curitiba, repudia a decisão presidencial e já está se articulando com a Secretaria da Mulher de Brasília e a Procuradoria da Mulher do Estado para pressionar o Congresso pela derrubada dos vetos presidenciais.

“A falta de acesso a absorventes é apenas uma das dimensões da pobreza menstrual, e atinge com bastante força qualquer pessoa que menstrua e que se encontra em situação de vulnerabilidade em nosso país. Em números, isso compreende mais de 25% das mulheres brasileiras. São milhares de meninas e mulheres que são obrigadas a utilizar itens improvisados de absorção de fluxo, como papel higiênico, jornal, sacolas, areia e miolo de pão, que as impactam fisicamente, emocionalmente e psicologicamente todos os meses”, declara a coordenadora do coletivo, Andressa do Carmo.

A ativista avalia que o PL de Marilia Arraes “é o mais completo já aprovado pelo Senado na história do nosso país”. “Se tivesse sido sancionado pelo Presidente Bolsonaro sem vetos, o Brasil se equipararia à Escócia, em termos de dignidade menstrual, que hoje é o único país do mundo que distribui absorventes gratuitamente à população”.

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Dificuldades da falta de acesso

Lua Gomes, vice-presidente estadual da Central Única das Favelas (CUFA) em Londrina, lamenta que ainda seja preciso discutir necessidades primárias do corpo feminino em pleno 2021, e revela impactos da falta de acesso a absorventes na vida de pessoas que menstruam.

“A vida de adolescentes e mulheres ainda é impactada por um tabu, como se fosse uma vergonha, contudo é fisiológico. Eu mesma, na época da escola, enfrentei dificuldades por falta de absorventes, como tantas outras mulheres. Como sair para o trabalho sem a devida proteção? Frequentar a escola, círculos sociais e outros espaços de construção?”, questiona.

A CUFA vem realizando campanhas interminentes de coleta de absorventes e produtos de higiene básica. Recentemente, em parceria com o coletivo Igualdade Menstrual, a organização arrecadou mais 6 mil unidades para distribuição em Maringá e Londrina. “A CUFA, institucionalmente, tem um olhar muito sensível à luta das mulheres. Reconhecemos a importância e o poder das mulheres. Não é à toa que o norte da campanha humanitária de pandemia foram as mães da favela”, ressalta Lua.

“Papel higiênico dobrado segura mais que ele”, diz ex-detenta sobre absorvente na cadeia

W.M., 43, passou 18 anos dentro do sistema prisional do Paraná, a maior parte em Curitiba e três anos em Londrina. Ela diz que o absorvente fornecido era ruim e em quantidade insuficiente. “O papel higiênico dobradinho segura mais que ele, não tem como usar. As funcionárias do setor de costura pegavam retalhos das malhas das roupas que a gente usava e fazia absorvente pra gente”, relembra.
“Eles querem dar um pacotinho com 10 absorventes, e você tem que pegar três para fazer um. Tem mulher que menstrua sete dias seguidos”, questiona. Segundo W., a dificuldade de acesso ao produto torna ainda mais difícil a existência no ambiente já precário do sistema prisional.
“Eu pelo menos sou coerente, todo mundo está ali cumprindo sua pena, desde que cumpra com dignidade”. Ela lembra que a qualidade dos demais produtos ofertados é tão ruim quanto a do absorvente. “O sabonete é uma pedra de sabão. Eu já procurei, sempre procuro quando vou em supermercado mais simples, nunca achei. É um sabão que fede”.
Ela conta que fazia trabalhos de bordados na cadeia e vendia para as próprias funcionárias para adquirir produtos de melhor qualidade.

Imposto de ‘iPad’

A alta taxação dos absorventes é um dos entraves que torna o produto mais caro e inacessível a mulheres em vulnerabilidade. “Aproximadamente 25% do preço dos absorventes é composto de impostos. Uma média, já que cada estado tem sua própria taxação. Só em SP, por exemplo, essa porcentagem é de 34,5%. É uma taxa maior que a da Hungria sobre absorventes (27%), que é o país com a maior taxação de impostos do mundo”, compara Andressa do Carmo.

Segundo o coletivo Igualdade Menstrual, 1 a cada 4 adolescentes brasileiras falta à escola quando está menstruada porque não possui absorventes. São aproximadamente 45 dias letivos perdidos por ano, o que aumenta a evasão escolar e a desigualdade de gênero. “Os absorventes são direitos humanos, que já deveriam ser vistos como essenciais há muito tempo”, define a ativista.

“Seguimos na luta e acreditamos que há pautas que podem ser superadas se os preconceitos forem desconstruídos. Não há nada de mau em menstruar, mas não ter acesso a um item que não é considerado básico por falta de empatia, isso não podemos aceitar”, finaliza Lua Gomes.