Manifestação cobra justiça para vítimas de duplo feminicídio

Ato está marcado para dia 19 de fevereiro; autor dos crimes foi condenado por incêndio com resultado morte

Ale e Dani, como eram chamadas pelos amigos, morreram após terem os corpos gravemente queimados / Arquivo pessoal

Familiares de Alessandra Vaz e Daniela Mousinho da Silveira, que morreram em outubro de 2019, realizam no dia 19 de fevereiro uma manifestação em Poços de Caldas, Minas Gerais, pedindo justiça pelas vítimas de feminicídio. As amigas, que tinham 47 anos quando faleceram, tiveram os corpos queimados durante incêndio causado pelo engenheiro de produção Rodrigo Alves Marotti, 35, ex-companheiro de Alessandra. O crime aconteceu em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Marotti foi julgado em 8 de fevereiro e condenadoa 19 anos e quatro meses de reclusão pelo crime de incêndio com resultado morte, sendo absolvido da acusação de feminicídio. O júri entendeu que apesar de ter iniciado o fogo, não havia intenção de matar.

Para a irmã de Alessandra, a cantora Andreza Vaz, 45, a decisão fez com que os parentes e amigos das duas mulheres ficassem com sentimento de impotência. “É muito difícil a gente saber se houve algum erro, são termos técnicos, mas o que a gente entende é que o Rodrigo, que era réu confesso, no momento do julgamento disse que não foi ele quem ateou fogo. A decisão do júri de não o entender como um assassino é muito confuso para a gente”, relata.

Andreza defende que o julgamento seja refeito. O MP (Ministério Público) está recorrendo da decisão, na tentativa de anular o processo. “É uma descrença nesse júri que estava lá e votou contra feminicídio e contra o homicídio doloso, porque eles estavam representando a sociedade. Meu sentimento depois disso é de descrença na humanidade, na Justiça, porque se não fosse a sentença da juíza ele teria saído de lá como inocente”, completa.

A irmã de Alessandra afirma ainda que a decisão representa um retrocesso na luta feminina, pelos direitos das mulheres e na luta contra o feminicídio. “A gente não pode aceitar que um júri popular tenha essa decisão. Nem nos meus piores pesadelos eu imaginaria que pudesse vir uma sentença dessa. É inadmissível a gente aceitar o resultado de um julgamento desse para uma luta tão grande que nós temos que enfrentar todo dia que é contra a violência doméstica e contra o feminicídio”, completa.

As amigas se abrigaram das agressões de Marotti em um banheiro / Arquivo pessoal

REVOLTA

Filha de Daniela, a estudante de medicina veterinária Luiza Mousinho da Silveira Oliveira Gomes, 21 anos, avalia que o fato do júri ser composto por pessoas que estavam pela primeira vez em um caso de feminicídio e ser formado em sua maioria por homens (eram quatro homens e três mulheres) contribuiu para o resultado. “O júri foi incapaz de entender  a definição penal para dolo, que é quando alguém faz uma ação concebendo no mínimo a possibilidade do resultado final, se a pessoa assume o risco, há o dolo. E o júri foi incapaz de perceber isso”, afirma.

“No fórum de Nova Friburgo o júri popular decidiu, representando a sociedade friburguense,  que um homem, ao incendiar uma casa, não teve intenção de matar as duas vítimas que estavam presas dentro do banheiro. Isso é um absurdo, é inadmissível”, completa Luiza. “Tenho plena confiança que outro júri será realizado, porque um feminicida não pode cumprir apenas 19 anos de prisão. Sem o agravante de crime hediondo, ele ainda pode estar solto em três anos”, conclui.

Rodrigo Marotti foi condenado a 19 anos e quatro meses de reclusão / Reprodução internet

DINÂMICA DE MISOGINIA

Na avaliação da advogada, doutoranda em direitos humanos e coordenadora geral da Defemde – Rede Feminista de Juristas, Amarilis Costa, a decisão do júri ignorou uma dinâmica de misoginia, de violência doméstica, de estrutura machista heteropatriarcal que não só viabilizou, mas impulsionou que o réu realizasse sua conduta criminosa. “Do ponto de vista técnico a desqualificação do tipo penal inicialmente imputado ao réu é possível”, afirma, ao explicar porque uma pessoa inicialmente é acusada de um crime, mas acaba condenado por outro, como ocorreu neste caso.

Amarilis afirma que o crime, o contexto da atuação Marotti vai justamente em direção ao ódio às mulheres. “O feminicídio é marcado justamente por essa característica, é um crime onde se pretende matar alguém em razão da sua condição de mulher e nesse caso nós temos claramente exposto a misoginia e o machismo que permeou a situação”, reforça.

A advogada alerta que decisão em questão abre um diálogo urgente e muito necessário. “O contexto da misoginia, o contexto do machismo, o contexto do hétero patriarcado, faz com que existam outras condutas criminosas motivadas pelo ódio às mulheres e é justamente nesse sentido que o tipo penal de feminicídio pode não abarcar necessariamente todas as condutas violentas direcionadas a mulheres e meninas no País”, pontua.

 “Isso significa dizer que é necessário e urgente observar o contexto da violência de mais ampla e abarcar não só outras condutas e outros tipos penais que possam ser praticados em razão de ou por causa da condição feminina de suas vítimas, mas é preciso pensar no contexto violento e de algozes que as mulheres estão comumente expostas no seu dia a dia”, conclui.

Amarilis afirma que existem dois problemas muito específicos que permeiam esse caso e sobre os quais é preciso uma profunda reflexão. “O primeiro deles é o contexto de desqualificação do crime de feminicídio, que faz com que a Justiça não se faça para muitas vitimadas mulheres por esse tipo de prática delituosa. E numa outra ponta um grande excedente de condutas criminais que também são praticadas em razão da condição de mulheridade das vítimas e que não são vistas ou consideradas nesse contexto pelo judiciário.”

DESPREPARO DO JUDICIÁRIO

Para a especialista, este é um exemplo claro que de que o judiciário atualmente não está preparado para identificar as questões relacionadas à violência de gênero estrutural em suas demandas. “É preciso entender que a violência de gênero, que a misoginia, que o machismo são estruturais. Que nós vivemos em uma sociedade heteropatriarcal e por vezes muitas das nuances das situações cotidianas, das situações de delito e violência que são levada ao judiciário não são analisadas pela ótica da dinâmica das teorias de gênero, da compreensão do contexto das questões de gênero” finaliza.

A manifestação que está sendo convocada pelas redes sociais ocorre no dia 19 de fevereiro, com concentração às 14 horas, na Praça do Coreto, em Poços de Calda, Minas Gerais, cidade natal de Alessandra. Os organizadores pedem que os participantes usem roupas pretas e levem materiais para confecção de cartazes. Em caso de chuva, a concentração será na rua Assis Figueiredo, em frente à galeria Futuristas. O Portal Firminas não localizou a defesa de Marotti.

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