Defensoras públicas de todo o Brasil denunciam violência de gênero

Grupo criou uma campanha contra a violência de gênero no sistema de justiça brasileiro

Foto: divulgação

Um grupo composto por defensoras públicas de todo o Brasil se uniu com o objetivo de denunciar casos de violência de gênero sistemática em suas atividades institucionais. A reunião de alguns desses relatos foi apresentada em parecer técnico para exposição das violações de legislações a respeito e de possíveis saídas para a redução dessas violências.

Os relatos são apresentados no parecer de forma anônima, para preservar a identidade das mulheres que decidiram expor suas situações. Essa é a primeira vez em que um grupo de defensoras públicas decide falar sobre as violências sofridas durante suas atividades que, na opinião delas, são um “reflexo de estruturas institucionais machistas cristalizadas no serviço público”.

As mulheres relatam tratamento desigual de gênero de forma sistemática e estrutural em todos os espaços da carreira. Por isso, decidiram criar a Campanha Permanente Contra a Violência de Gênero nas Defensorias Públicas, um canal para receber esse tipo de denúncia e provocar uma mudança de consciência que introduza o compliance no órgão.

 Defensoras públicas pedem Igualdade de gênero

 O parecer chama a atenção à necessidade de estratégias para “enfrentar de forma ampla a divisão sexual do trabalho e suas consequências para os espaços institucionais, principalmente para cargos eletivos ou de tomada de decisão. (…) Se, de um lado, a Constituição Federal, os marcos legais e o exercício do direito ao voto permitiram a ascensão e ampliação da participação feminina, de outro lado ficaram ainda mais evidentes as desigualdades e a violência em espaços de poder”.

Ainda conforme o texto, é preciso reconhecer as estruturas sociais construídas para que as mulheres tenham menos acesso a cargos de poder, menos controle sobre recursos, em padrões generalizados de desigualdade sistêmica entre homens e mulheres. No Judiciário brasileiro, por exemplo, a desigualdade estrutural fica mais evidente: o índice brasileiro de Paridade Política para a dimensão do Poder Judiciário é de 21,7 em um score de 100, o que demonstra a baixíssima presença de mulheres nos cargos de maior poder e decisão neste âmbito.

O índice de paridade política (IPP) do Brasil, ao incluir outras dimensões relacionadas, sobe para 39,5 – ainda bastante baixo quando comparado a outros países da região, como Bolívia (64), Peru (60,1) e Argentina (44,7). O estudo aponta que a baixa participação de mulheres no parlamento contribui para a maior resistência a legislações de empoderamento feminino como as cotas, o que, por sua vez, se reflete nas listas eletivas de todas as carreiras, isto é, um problema sistêmico.

Durante a elaboração do parecer, foram levados em consideração dados do Judiciário brasileiro. As Defensorias Públicas fazem parte do sistema de justiça do País, no qual se integram diversos órgãos do sistema Judiciário, mas não existem estudos coletados especificamente sobre a instituição no que se refere a questões de gênero.

Participação feminina

De acordo com dados do IBGE, a população brasileira é formada por 51,6% mulheres e 48,4% homens. Devido à estrutura social, elas são as que mais sofrem com o desemprego, que chega a ser 54,4% maior entre mulheres do que entre homens.

Quando se trata de participação nos espaços de poder, especialmente no serviço público, essa é uma realidade excludente para as mulheres. Nos Ministérios do Brasil, por exemplo, estudo da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) demonstrou a ausência de mulheres em cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) níveis 4 a 6, que exigem perfil profissional mais qualificado e também possuem remuneração maior. Na pasta de combate à fome, esse percentual de participação era de 52%, enquanto nas pastas de Fazenda caía para 21% e 15% no Ministério da Defesa. Os dados são de 2014 e esse é o estudo mais recente publicado.

Segundo o parecer, esses dados apontam para uma desigualdade que se mostra não apenas na baixa presença, mas também na distribuição por estereótipos das pastas e atribuições apesar de políticas pontuais de participação institucional feminina no Judiciário. Na Magistratura, apenas 38,8% são mulheres, conforme dados divulgados pelo CNJ em 2019.

Relatório Atenea, produzido pela ONU Mulheres e PNUD Brasil aponta, inclusive, que não há órgãos específicos para promover a igualdade e o monitoramento de medidas nos atores do sistema de justiça. O mesmo relatório, de 2020, pontua que as mulheres representam quase metade das advogadas do país (49,2%), mas apenas 35,9% dos magistrados são do gênero feminino. O parecer sugere, diante dessas informações, a existência de um “filtro de gênero”, obstáculo à ocupação de posições superiores da carreira jurídica por mulheres no Brasil.

Mulheres sub-representadas

O parecer divulgado observa que, em relação à participação menor de mulheres no serviço público e em cargos de decisão, “a sub-representação feminina era reconhecida como um problema fruto das desigualdades históricas referentes à participação das mulheres nos espaços de poder, bem como era atribuído ao grupo a responsabilidade da sub-representação, como se ali não estivessem porque não desejassem”.

“Junto a isso, os ataques, assédios, constrangimentos, ameaças, tentativas de silenciamento e até violências físicas eram considerados de forma casuística e individual, como se fruto de divergência político-ideológica ou partidária ou de lapso comportamental do agressor”, pontua o texto.

Apesar das dificuldades enfrentadas pelas mulheres em sua participação política na sociedade, a primeira legislação para enfrentar e prevenir esse tipo de violência foi aprovada apenas em 2021 e abriu espaço para incorporar essa dimensão à violência institucional que as servidoras públicas são submetidas em vários espaços de atuação. Segundo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra às Mulheres no Brasil, violência institucional é “aquela praticada, por ação e/ou omissão nas instituições prestadoras de serviços públicos”.

Relatos de violência de gênero

O coletivo de mulheres tem mais de duzentas defensoras públicas do país e os relatos de violência de vários tipos são constantes. Das mais de duzentas participantes do grupo, onze decidiram realizar a campanha e desenvolver o estudo que resultou no parecer divulgado. Delas, cinco disponibilizaram suas narrativas para o documento. Os nomes citados são fictícios, para preservar o anonimato das vítimas. Seguem trechos de algumas histórias:

O relato de Maria, defensora que atua na Região Norte, afirma que “depois que começou a se posicionar politicamente e a se colocar contra algumas posturas de apadrinhamento da administração da defensoria, dentre outros atos, começou a passar por invisibilização de seu trabalho. Ao enviar reportagens replicadas em outros jornais, livros, artigos, para publicação nas páginas da instituição, nunca obteve o aceite, enquanto que com colegas homens as reportagens e publicações eram facilmente divulgadas. Até mesmo no caso de decisões importantes (…) de grande repercussão, não houve divulgação, o que contrasta com casos semelhantes conduzidos por colegas homens”.

Por outro lado, Juliana relata que sofreu assédio sexual na antessala de uma audiência. “Eu não pude sequer denunciar ou falar, foi uma experiência muito impactante e revoltante”. Ela descreve que teve muita liberdade de atuação no início da carreira na defensoria, mas que enquanto ganhava destaque, passou a ser invisibilizada por integrantes da instituição.

Juliana, que atua na Região Sul, ressalta que o ápice de violência institucional em sua carreira foi durante reunião em que se discutiu a homologação de sua candidatura ao cargo de Defensora Pública Geral do Estado. Segundo o texto do parecer:

“Naquela reunião ficou muito evidente a violência, foram fortes as investidas para que ela não participasse ou tivesse voz. (…) O próprio acesso às gravações da sessão foi dificultado, a ponto de ser necessário impetrar um mandado de segurança para obtê-las. (…) Ilustra que ela foi colocada em um estereótipo de mulher ‘barraqueira’ e agressiva, desviante e inadequada, uma pessoa que estava tentando tensionar a situação, forçar uma coisa que parecia desnecessária – sua candidatura”.

Outra defensora que resolveu expor sua história foi Bárbara, que observou o início das violências institucionais quando aceitou assumir um cargo de direção em entidade associativa. Ela diz que foi na campanha de eleição que começou a sofrer assédio moral. Seus oponentes passaram a afirmar que ela era uma ameaça à direção do órgão e espalharam boatos de que a defensora seria amante do seu adversário.

Atuante na Região Nordeste, Bárbara explica que, em determinada ocasião, foi convocada para atuar em um núcleo especializado com outros colegas (dois homens). Ao concluir uma peça jurídica, houve ampla repercussão da ação promovida e a defensora (única mulher do grupo que promoveu a citada ação) foi questionada formalmente com base em alegação de que estaria infringindo normas internas. Somente a defensora, do grupo com mais dois homens, recebeu ligações de superiores questionando a ação por gritos ao telefone.

A defensora e sua família foram expostos publicamente em reportagens e mídias sociais. Ela e o filho foram vítimas de ameaças motivadas pela exposição de sua atuação. A profissional solicitou providências institucionais e ainda não obteve resposta da solicitação, mesmo seis meses após os fatos.