Economia do Cuidado: as mulheres saíram de casa, mas os homens não entraram

Economia do Cuidado: as mulheres saíram de casa, mas os homens não entraram

O termo economia do cuidado abrange o trabalho doméstico não remunerado, mas não se limita a ele, também incorpora atividades hoje profissionalizadas, como as de atenção à saúde

*Stefanie Schmitt

É dever somente da mulher realizar os cuidados voltados para a manutenção do bem-estar e saúde das pessoas dentro de casa? Infelizmente, para muitos, a resposta é sim. Com isso, temos uma atribuição de papéis em que, para elas, cabe a responsabilidade do lar e, para eles, trabalharem fora e trazer o sustento para casa. Uma visão que não reflete mais a realidade brasileira, mas que ainda tem respaldo em uma grande parcela da sociedade.

Embora a desigualdade de gênero seja fortemente permeada pela nossa cultura, uma luta importante vem sendo travada pela maior equidade de tratamento e oportunidades, o que envolve o reconhecimento da economia do cuidado e destes trabalhos executados principalmente pelas mulheres. Tal ação busca não apenas valorizar economicamente atividades ainda predominantemente desempenhadas por mulheres, mas também a conscientização sobre a necessidade de maior participação masculina nesse âmbito.

Em sua definição, a economia do cuidado diz respeito aos trabalhos feitos para manutenção da vida, não só das pessoas que costumam demandar mais atenção, tais como crianças, idosos e aquelas acometidas por algum problema de saúde, mas de qualquer pessoa e, também, do planeta. O termo abrange o trabalho doméstico não remunerado, mas não se limita a ele, pois também incorpora atividades hoje profissionalizadas, como as de atenção à saúde.

Com a pandemia, a economia do cuidado se tornou uma preocupação global, visto que os cuidados, especialmente, dos grupos de risco demandaram uma maior carga de trabalho e esforços daqueles na linha frente em hospitais e, também, dentro de nossas casas. O isolamento trouxe à tona a indivisibilidade da vida profissional e pessoal das pessoas e, aquilo que era até então complementar, e que não enquadrava no rol de atividades econômicas, passou a receber atenção por ser indispensável ao bem-estar das pessoas.

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Segundo dados divulgados pelo relatório Tempo de Cuidar (Oxfam), mulheres ao redor do mundo dedicam cerca de 12,5 bilhões de horas, diariamente, ao trabalho do cuidado não remunerado – o que, de acordo com a OIT (Organização Mundial do Trabalho), “é a principal barreira que impede as mulheres de entrarem, permanecerem e progredirem na força de trabalho”. Se elas fossem remuneradas pelo cuidado não remunerado, adicionariam, pelo menos, US$ 10,8 trilhões à economia global anualmente – quantidade que corresponde a mais de três vezes o valor global da indústria de tecnologia.

É fato que, hoje, há uma certa consciência sobre este tema, dados os impactos da pandemia e o trabalho de ativistas sobre questões femininas. Em maio, tivemos no Brasil o lançamento do grupo de trabalho para elaboração da Política Nacional de Cuidados e, em nível global, vemos o aumento de investimentos na construção de casas de apoio, creches, e outras instituições de cuidado, o que ameniza a sobrecarga de trabalho em casa, mas não resolve a questão. Uma maior equidade ainda está muito longe de ser conquistada, uma vez que não basta apenas dispor de políticas públicas, mas sim ser preciso uma mudança dentro e fora de casa.

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Mesmo com a remuneração de algumas atividades da economia do cuidado, como os cuidados com idosos, babás, e outros similares, a desvalorização destes serviços ainda é evidente. Hoje, uma mulher no emprego doméstico no Brasil ganha cerca de 78,44% do rendimento de homens que exercem as mesmas funções, de acordo com a Pnad Contínua. E, se o trabalho doméstico tem gênero, ele também tem cor. Quando a mulher branca não assume todas as responsabilidades do cuidado, é a negra quem é contratada, normalmente, por uma remuneração ainda mais baixa.

Indo além das políticas públicas, para que possamos promover uma verdadeira mudança estrutural, precisamos tratar devidamente a questão do cuidado em todos os âmbitos da nossa sociedade. Nos lares, isso significa não apenas dar o devido reconhecimento financeiro àquelas que desempenham esses serviços, mas também estimular que os homens assumam responsabilidades e respondam pela manutenção do bem-estar e saúde das pessoas dentro de casa, desprendendo a associação destas atividades ao feminino.

A mesma premissa vale para os ambientes corporativos. Ter um plano de ação voltado para a diversidade e inclusão não é suficiente, sem que se crie um espaço de discussão sobre a incidência das responsabilidades do cuidado e se apoie essa conciliação aos deveres profissionais. Afinal, quando uma mulher começa a somar múltiplas responsabilidades do cuidado, como a maternidade e o cuidado de idosos, sua carga laboral aumenta consideravelmente e, não são os raros os casos em que acaba impedida de progredir na carreira ou de se dedicar a uma atividade econômica, o que não costuma ocorrer com os homens.

Ao não conferimos valor ao desempenho das atividades do cuidado, limitamos o impacto de ações voltadas para a promoção da equidade. Muitas das crenças mencionadas e separatórias de gênero são transmitidas de geração em geração, o que “justifica” a dificuldade de colaboração entre homens e mulheres nesses serviços. Contudo, quanto mais essa questão for discutida e suas consequências realmente compreendidas, para além da implementação de políticas públicas, mais rápido a “igualdade entre gêneros” poderá ser uma realidade.

Stefanie Schmitt

Estima-se que, em 2050, o Brasil terá cerca de 77 milhões de pessoas dependentes de cuidados entre idosos e crianças, segundo uma estimativa do IBGE. Neste cenário, será imprescindível que todos reconheçamos, dentre outros, financeiramente o trabalho de quem cuida, fomentando sua dissociação do feminino. Se muitas mulheres saíram de casa, diversos homens ainda não entraram – uma balança que precisa ser equilibrada o quanto antes para que elas não sofram mais com essa sobrecarga sem reconhecimento.

*Stefanie Schmitt é CEO da Olhi, startup de serviços voltada ao empreendedorismo feminino.

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