Registros de feminicídio caem no país e crescem no Paraná

Em 2021, 75 mulheres foram vítimas de feminicídio no Paraná, contra 73 em 2020; no país houve redução nos casos, mas aumento das demais violências

Registros de feminicídio caem no país e crescem no Paraná
Arquivo/Néias-Observatório de Feminicídios Londrina

Por Cecilia França – Rede Lume de Jornalistas

O número de feminicídios em todo o país teve leve redução de 2020 para 2021, caindo de 1.354 para 1.341 casos. No Paraná, ao contrário, o número cresceu de 73 para 75 no mesmo período e as tentativas de feminicídio praticamente se mantiveram: foram 60 em 2020 e 61 em 2021. Os dados são do Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2022, divulgado pelo Fórum Brasileiro da Segurança Pública no mês de junho.

Hoje, no Dia Estadual de Combate ao Feminicídio, ativistas analisam os dados e destacam: faltam políticas públicas efetivas de conscientização e combate à violência de gênero, bem como há deficiência na coleta dos dados, que podem estar defasados. O dia 22 de julho marca a data do feminicídio de Tatiane Spitzner, asfixiada e jogada da sacada do prédio onde morava pelo então companheiro, Luis Felipe Manvailer, condenado a 31 anos de prisão. O crime ocorreu em 2018, em Guarapuava.

Carmem Regina Ribeiro, representante da sociedade civil no Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, comenta a dificuldade na coleta coesa de dados no país e pondera sobre a diminuição de casos nacionalmente.

“A análise dos dados da área da Segurança Pública, em geral, traz algumas dificuldades devido à ainda baixa confiabilidade nos sistemas de registro. O próprio Anuário costuma pontuar esta questão quando publica os dados. O Sistema Nacional de Segurança Pública ainda não está completamente implantado e não consegue estabelecer uma homogeneidade na coleta e tratamento dos dados entre todos os Estados. No caso dos dados de feminicídio agrega-se a estas dificuldades o fato de que a lei que define o crime de feminicídio, apesar de ter sido aprovada em 2015, exigiu o estabelecimento de um protocolo nacional para orientar a avaliação dos casos na perspectiva de gênero”, ressalta.

Fonte: Anuário da Segurança Pública 2022

Carmem destaca que o protocolo de investigação inclui desde a avaliação do local do crime, do ambiente, da condição em que se encontra a vítima, tipo de arma utilizada e, principalmente, a relação da vítima com o provável agressor. Estes e outros aspectos definem quando um crime é feminicídio ou não.

“Isso exige a capacitação permanente dos agentes de segurança, dos peritos e mesmo do Ministério Público e dos juízes. Portanto, uma variação nos quantitativos de um ano para o outro pode significar um aumento ou diminuição dos casos, mas pode também indicar falta de capacitação para avaliar e tipificar os crimes. Será preciso formar uma série histórica de dados para melhor calibrar nossa análise”.

A antropóloga Martha Ramirez, integrante de Néias-Observatório de Feminicídios Londrina, não vê a queda nacional como um dado alentador, “até porque esse número pode não ser significativo em termos estatísticos, considerando que se trata do território nacional; além de considerarmos que nem todo assassinato de mulheres, num contexto de violência de gênero, é tipificado como feminicídio”.

Ela explica que a organização defende uma leitura mais ampliada da Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015). “Alguns operadores do direito, por exemplo, interpretam que a qualificadora de feminicídio se restringe ao contexto de relações conjugais ou amorosas, omitindo que a lei do feminicídio se refere à morte violenta de mulheres por razões de gênero, ao menosprezo pela condição de mulheres, o que acontece independentemente de convivência ou de relação íntima com o feiminicida”.

Amanda Gaion, da Rede Feminista de Saúde, também não vê motivos para comemorar a leve queda nos números nacionalmente e ressalta o possível impacto da pandemia neste cenário.

“As mulheres tiveram que se manter presas com seus agressores que, muitas vezes, são seus companheiros, maridos, pais, pessoas próximas que fazem parte do seu núcleo familiar e cotidiano. Ao estar confinadas com os mesmos, o medo da morte e da violência é extremo, obrigando essas mulheres a se silenciarem frente às agressões deste homem ou homens e se submetendo a diversas provocações e violências, com isso tendo uma mulher submissa em casa e sem ‘dar trabalho’, como muitos homens dizem. Essa pessoa que está no lugar de agressor diminuiu as possibilidades de tentativas de agressões e até mesmo de morte, lembrando que as violências continuaram, mas as denúncias podem ter diminuído frente ao confinamento”, avalia.

Amanda encara a violência de gênero como um “problema social ainda não resolvido e esquecido, principalmente, pelo atual governo brasileiro que durante esses 4 anos não promoveu campanhas ou ações de combate ao feminicídio e, se promoveu tais ações, foram extremamente poucas, quase irrisório, não encarando de fato a morte de mulheres como um problema social que precisa com urgência ser enfrentado, discutido, combatido”.

Dentre as vítimas de feminicídio no país em 2021 62% eram negras e 37,5%, brancas. Nas demais mortes violentas intencionais, a diferença é ainda maior: 70,7% das mulheres mortas são negras e 28,6% brancas. Fátima Beraldo, gestora municipal de Promoção da Igualdade Racial em Londrina, acentua que o lugar social destinado às mulheres negras propicia diferenças brutais como estas.

“Quando se trata da mulher negra os dados apontam que a pandemia e, antes mesmo da pandemia, as reformas trabalhistas e da previdência contribuíram para o aprofundamento das desigualdades, e como esse grupo social encontra-se na base da pirâmide social está mais sujeito às formas de opressão e violência que afetam as mulheres”, contextualiza.

Fátima ressalta que os movimentos sociais e coletivos vêm denunciando o aumento da violência contra as mulheres, e conquentemente do feminicídio, ao longo dos anos. E aponta estratégias para mitigação das violências.

“A denúncia, punição dos agressores e instituição de políticas públicas são algumas das medidas, pois lamentavelmente, em nosso país os crimes que atentam contra a vida de mulheres, dada a uma cultura patriarcal e machista são tratados muito brandamente”, defende.

A gestora lembra que a violência contra mulheres e jovens negros, especialmente, é explicada pelo racismo arraigado na sociedade brasileira. “Em 2019, o Atlas da Violência já apontava um crescimento significativo quanto a ceifar vidas negras de mulheres e jovens neste país. De lá para cá o crescimento disparou e os dados só têm aumentado.  A forma de enfrentamento é o combate ao racismo com o rigor necessário e que é esperado pela população negra”, define.

Fátima lembra que neste mês é comemorado o “Julho das Pretas, que tem por finalidade pautar agendas específicas de mulheres negras. “A data se originou no 1º Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, realizado em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992. Desde sua instituição o 25 de julho vem se consolidando no calendário de lutas do Movimento Negro, na perspectiva de fortalecer o legado de lutas das mulheres negras brasileiras, principalmente, combatendo as várias formas de opressão que afeta esse grupo social, no caso o racismo, o patriarcalismo e o machismo”, explica Fátima.

O 25 de julho, no Brasil, também homenageia Tereza de Benguela, liderança quilombola que assumiu o quilombo do Quariterê, localizado no Vale do Guaporé (MT), após a morte de seu companheiro José Piolho. Em 2022, o tema nacional do mês é “Mulheres Negras no Poder, Construindo o Bem Viver”.

Praticamente todos os indicadores relativos à violência contra mulheres apresentaram crescimento em 2021, de acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2022. Houve aumento de 3,3% na taxa de registros de ameaça e crescimento de 0,6% na taxa de lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica entre 2020 e 2021. Os registros de crimes de assédio sexual e importunação sexual cresceram 6,6% e 17,8%, respectivamente. (Fonte: Anuário Brasileiro da Segurança Pública)

Saída passa pela informação

Amanda Gaion defende que a educação popular seja uma das estratégias no combate efetivo à violência de gênero. “Propostas de atuação junto a população seria de grande ajuda, campanhas de sensibilização de diversos grupos sociais e ações de conscientização poderiam fazer com que as narrativas e as atitudes frente a esse problema social que é a violência contra as mulheres mude, se transforme”, acredita.

Para a ativista, também é necessária avaliação constante das leis criadas para proteção das mulheres em situação de violência, além da capacitação de agentes públicos, agentes do poder judiciário e da segurança pública. “Temos muitos relatos de mulheres que afirmam que a violência contra elas continua nas instituições. Negar uma medida protetiva a uma mulher em estado de ameça, por exemplo, é continuar violentando a mesma”.

Martha Ramirez acredita que um dos maiores desafios no combate à violência de gênero seja a desinformação não só da população, mas também das autoridades. “Temos, desde 2015, a lei de feminicídio, que alterou o Código Penal Brasileiro. No entanto, a promulgação da lei não é suficiente se não está acompanhada de políticas públicas efetivas que legitimam a interferência do Estado. Precisamos ir além do problema da desinformação. Precisamos operar com uma mudança da mentalidade da população, que permita o combate a todas as formas estruturais de violência de gênero”, finaliza.

Cresce violência contra meninas

Os dados de violência contra meninas e adolescentes apresentados pelo Anuário da Segurança Pública mostram aumentos aterradores nos diversos tipos de ocorrência. Casos de estupro tiveram leve queda, enquanto a taxa de estupro de vulneráveis aumentou 5,5%. Foram 37.872 registros no país. Meninas representam 88,2% das vítimas e 61,3% delas tinham entre 0 e 13 anos.

O crime de “divulgação de cenas de estupro ou estupro de vulnerável, de cena de sexo ou pornografia” teve aumento de 22,7%, sendo registrados 3.181 casos. Lembrando que estes são crimes comumente subnotificados.

Amanda Gaion, da Rede Feminista de Saúde, acredita na educação e na mobilização popular como forma de conscientização sobre esses crimes. “Acredito na criação de comitês populares para debater, discutir, fomentar os direitos das mulheres neste país. Sou a favor e adepta da educação popular, criar grupos que façam a palavra e a escuta circular é fundamental para reflexão e mudança de ação/atitude por parte de todas e todos nós”.

“Também penso ser muito valioso debater sobre dentro das escolas, sejam públicas ou privadas, levar esse tema, ouvir, discutir junto às nossas crianças e adolescentes sobre esse problema social. Além de prevenir, podemos fazer com que amplie a consciência crítica sobre esse fato social”.

Carmem Ribeiro, do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, lembra que a violência contra crianças e adolescentes não é algo novo, mas que vem sendo divulgado nas últimas décadas, com ganhos para a formulação de uma legislação mais protetora e de políticas públicas voltadas para a prevenção e para a atenção às vítimas de violências.

“Porém, entre a letra da lei e a prática real há, muitas vezes, um abismo. Pode-se supor inclusive, ainda que sem respaldo em pesquisas e análises mais profundas, que o fato de tais leis e políticas terem sido formuladas, por si só pode ter trazido à tona uma reação de parte da sociedade, notadamente daqueles mais conservadores, que orquestram campanhas contrárias a estas políticas e leis, dando-lhes interpretações falsas, opondo-as a conceitos e dogmas religiosos”, alerta.

Incentivo à violência

Martha Ramirez, do Observatório de Feminicídios, concorda que a defesa de pautas morais dificulta o combate efetivo à violência tanto contra mulheres quanto contra crianças.

“Não podemos esquecer que as campanhas para presidente e para outros cargos eletivos investiram fortemente nas chamadas pautas morais, focando nos avanços, conceitos e políticas de gênero, percebidos como ameaçadores para uma ‘ordem social’, que não é mais do que a patriarcal, de um machismo hegemônico. Após quase quatro anos desse período, estamos observando os resultados, não só a ausência de políticas públicas, como a destruição de algumas delas”.

Carmem Ribeiro enxerga um campo propício para o aumento da violência no Brasil atual, incentivado pelo governo Jair Bolsonaro.

“Parece haver uma cruzada contra qualquer coisa que se oponha à violência, que preze pela defesa dos direitos humanos, pelo respeito ao outro em sua diversidade, pela solidariedade e empatia. Neste ambiente de hostilidade estimulada, a violência tem espaço fértil. Na outra vertente, o governo federal em especial, atua no sentido de esfacelar todas as políticas públicas de caráter social, de defesa de direitos e ambiental, fazendo minguar os orçamentos das pastas que atuam nestas áreas, não utilizando os recursos previstos, não informando a população, distorcendo dados, impedindo fiscalização, não repondo Recursos Humanos, não respondendo a compromissos internacionais, enfim, boicotando qualquer ação que busque a defesa e proteção de grupos vulneráveis e do meio ambiente”.

Para a conselheira, a reversão deste quadro que ela classifica como “dramático” é uma tarefa árdua, mas necessária, que passa pela mobilização social. “Ninguém tem uma receita, apenas sabemos que não haverá um ‘salvador’, que dependerá de um trabalho conjunto, de contraposição ao ódio e à violência, de romper bolhas de comunicação, de reafirmar princípios democráticos, de acolher, de ser capaz de criar alternativas e não cair na tentação de fechar olhos e ouvidos e fingir que tudo está bem”, finaliza.

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