Lula volta ao jogo político; não esqueçamos do golpe machista contra Dilma

A elegibilidade restaurada pela anulação de suas condenações surge como novo episódio de esperança pela derrota do atual governo

Dilma e Lula na Campanha de 2014. Foto: Edu Guimarães

Toda (ou quase toda) a esquerda brasileira ainda sente o gosto de comemorar a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), após meses de reportagens que mostraram como o jogo entre o MP (Ministério Público) e o ex-juiz Sergio Moro era de cartas marcadas para que o petista fosse condenado. Uma jogada que o tirou da eleição de 2018 e abriu caminho para a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) – considerado internacionalmente como o mais ineficiente no combate à pandemia. Não podemos esquecer que todo esse enredo que culmina em 2021, com uma situação sanitária de descontrole em meio à perdas e retrocessos trabalhistas e de direitos humanos, começou em 2016 com o golpe machista contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Machista porque a avaliação de seu governo nunca foi sobre a sua competência, mas sobre a sua suposta inabilidade em se relacionar no jogo político. Quando vemos hoje o presidente Bolsonaro insuflando a população contra a imprensa, fica fácil lembrar da ex-presidente conversando sobre suas séries preferidas com os jornalistas que cobriam o dia a dia no Palácio do Planalto. Mas não se vê hoje em dia manchetes que o  classificam como “louco, histérico ou desequilibrado” na mídia hegemônica, como se via em 2016.

Jaqueline – foto: arquivo pessoal

Para a professora e pesquisadora em opinião pública da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo) e da USP (Universidade de São Paulo) Jacqueline Quaresemin de Oliveira, tirar uma mulher da presidência foi mais que um golpe político. “Além de toda injustiça e manipulações nas acusações, foi a legitimação da supremacia masculina, machista, na política brasileira, inclusive com apoio de mulheres dentro do Congresso”, afirmou, completando que tal falto certamente desmantelou todo um “sistema de proteção” e garantias de alguns direitos, resultados de lutas históricas, que vinham sendo implementados. “Os retrocessos são visíveis, inclusive pelo aumento de indicadores de violência contra mulher, mais divulgados por entidades da sociedade civil do que por organismos governamentais.”

Jaqueline acredita que, para que outra mulher volte a ocupar o cargo de presidente do Brasil, é preciso que se exija mudanças na legislação eleitoral para eleição com paridade de gênero (como no México, por exemplo) e não somente o mínimo de candidaturas que prevê a lei de cotas. E internamente travar tal debate nos partidos, que são, na sua maioria, dirigidos por homens e com práticas machistas. “Ou seja, se depender do Congresso atual e das direções partidárias, é pouco provável eleger uma mulher presidente na próxima década. Mas, a dinâmica dos processos é que determina a correlação de forças. Tem que lutar!”, reforçou.

Professora do departamento de história da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e integrante do Levante Feminista contra o Feminicídio, Patrícia Valim avalia que eleger novamente uma mulher presidente é um sonho do movimento feminista, e assim como Jaqueline, avalia que o machismo presente nos partidos e nos campos de centro esquerda são fatores de dificuldade para isso. “Por outro lado, em 2020 muitas mulheres foram eleitas, cisgêneras e transgêneras, coisa que não acontecia antes. Para 2022, já estamos articulando muitas candidaturas, candidaturas coletivas, e esperamos eleger um grande número de deputadas”, estimou.

RETORNO DE LULA

O retorno de Lula ao cenário político tem diversos efeitos, avaliam as entrevistadas. Para Jaqueline, ainda não é possível dimensionar o impacto, mas pelas análises preliminares do que foi dito nas redes sociais, especialmente após o discurso feito pelo petista em 10 de março, há uma renovação da esperança. “É um fato novo, inesperado, num contexto de agravamento da crise sanitária devido à ausência de política efetiva no combate à pandemia, com mais de 284 mil mortos”, pontuou.

 A docente lembrou que considerando o sistema federativo brasileiro, é responsabilidade do presidente tomar iniciativas, integrar ações com os Estados e, principalmente, dar o exemplo. Jaqueline também apontou que as eleições de 2020 mostraram que o combate à pandemia elegeu ou derrotou prefeitos. “A elegibilidade de Lula, a partir da decisão do ministro Edson Fachin do STF (Supremo Tribunal Federal), atinge o coração do projeto das forças ultraconservadoras só pela possibilidade de ele ser candidato. Embora Lula tenha dito que a eleição de 2022 é secundária diante da crise social e econômica que atinge os brasileiros, o PT, campo democrático à esquerda, têm condições de unificar uma agenda política capaz de impactar no atual contexto e para além de 2022”, concluiu.

Patrícia Valim – Foto: arquivo pessoal

Para Patrícia, a volta de Lula ao jogo político tem efeitos a curto, médio e longo prazo. A curto prazo, na avaliação da professora, a fala do petista foi a de um estadista, de um presidente, ainda que não mais o seja; de alguém que se coloca como um candidato em 2022, mas acima de tudo, alguém que está disposto a construir um pacto amplo. “Entendi aquele discurso como a carta aos cidadãos de 2002. Uma nova carta e um pacto pela vida”, citou. No médio prazo, a capacidade de mobilização de todo o campo político da esquerda, e no longo prazo, a viabilidade de um projeto para derrotar o atual governo. 

UM ACORDÃO, COM O SUPREMO, COM TUDO

Em 2016,  um  grampo telefônico flagrou o ex-ministro do Planejamento, Romero Jucá (MDB), sugerindo ao ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado um “pacto” para tentar barrar a Operação Lava Jato. Em uma conversa sobre o ainda não concretizado impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, Machado afirmava que era preciso “botar o Michel num grande acordo nacional”, em referência ao então vice-presidente Michel Temer (MDB), que assumiu a presidência após a saída de Dilma. Romero então enfatizou “Com o Supremo, com tudo.” Precisou de quase cinco anos desde aquele episódio para a Lava Jato realmente deixar de existir, mas nesse meio tempo, o Brasil elegeu o seu governo mais conservador desde a redemocratização e tem amargado uma piora constante de indicadores sociais, como aumento da pobreza e da fome.

O mesmo “Supremo”, ou parte dele, que decidiu que os julgamentos de Lula não ocorreram como manda a lei, agiu com a intenção de garantir efetivamente a legalidade, ou resgatar a credibilidade de sua imagem? Na avaliação de Jaqueline, um pouco de cada coisa. “As denúncias envolvendo manipulação e fraudes na operação Lava Jato, que impactaram diretamente no resultado do processo eleitoral de 2018, é um fato que ataca o Estado Democrático de Direito. Não fazer nada seria o esvaziamento da função dos ‘Guardiões da Constituição’, papel do STF. Daí apostar na anulação de todo processo que envolve o ex- presidente Lula”, pontuou. “Soma-se a isso os ataques à reputação de ministros entre outras autoridades judiciais. Reparar tais ações ultrapassa vaidades e egos para defender a hierarquia do sistema jurídico”, opinou.

Patrícia pontuou que o STF é formado por muitas pessoas e que, num passado próximo, o mesmo ministro Edson Fachin havia negado pedidos de habeas corpus apresentado pela defesa de Lula. “Foram reunidas provas que atestaram o que muitos juristas vinham alegando há tempos, de que houve arbitrariedades e que o ex-juiz Sergio Moro instruía o MP (Ministério Público). A decisão dele reconhece tudo isso e manda os processos de Lula para outro juiz, outro Estado”, relembrou. A docente avalia que para além das questões legais, fazem parte de toda essa movimentação, do ponto de vista político, as provas de que houve financiamento internacional para a Lava Jato e o que chamou de destruição da Petrobrás e do Estado brasileiro, que culminam, na atualidade, em uma necropolítica, nos termos de Achille Mbembe (historiador e filósofo camaronês, que cunhou o termo). “Quando o Estado vai gerenciar quem deve viver e quem deve morrer. São os mais pobres, os mais vulneráveis e os negros que têm morrido. E isso ficou claro na pandemia”, finalizou.