O machismo do Judiciário, dia sim e dia também

Ao questionar a mãe dos filhos do apresentador Gugu Liberato se os dois faziam sexo, advogado ignora totalmente as particularidades de cada relação

Revistas de fofoca acompanharam quase que em tempo real gravidez e nascimento dos filhos de Rose e Gugu

Sendo mulher, não há um dia em que a gente não veja o machismo. Sim, o machismo está em tudo, em todos, o tempo todo. Mesmo que nem todo mundo veja. O fato de destaque da vez é a audiência que foi realizada dia 22 de maio em São Paulo, no processo em que a médica Rose Miriam pede o reconhecimento da união estável com o apresentar Gugu Liberato, morto em 2019. Os dois tinham três filhos, mas não eram casados legalmente e Rose não foi incluída no testamento. A ação visa garantir que ela tenha direito à metade da herança.

Na audiência, o advogado que representa a irmã de Gugu perguntou à Rose se ela mantinha relações sexuais com o apresentador. Ela respondeu que sim e foi questionada sobre a frequência. Tudo isso na frente dos três filhos. Rose e Gugu viveram juntos por 19 anos. Fotos, viagens, entrevistas, há farto registro. A médica não foi a única a pedir reconhecimento de união estável com o apresentador. O chef de cozinha Thiago Salvático também entrou na Justiça alegando que os dois foram um casal por nove anos. Ele teve seu pedido indeferido.

Mas, voltando à Rose e ao questionamento do advogado – que não vou nem citar o nome – sobre a vida sexual de ambos: você imagina essa pergunta sendo feita a um homem? Eu aposto a ponta do meu dedo mínimo esquerdo (e como jornalista eu uso muito as pontas dos dedos) que nenhum advogado perguntaria isso para um homem. O pacto da masculinidade não permite. Ainda que o juiz tenha alertado que a pergunta era impertinente, é assombroso que um advogado tenha se achado no direito de fazê-la.

E mesmo que Rose e Gugu não transassem. Quem aí conhece algum casal, que casou no religioso, no civil, como manda o figurino, e há anos não transa? Ou casais que nem moram juntos, vivem em casas separadas. E de longe, que eu saiba, só rola sexo virtual. A questão é: o que isso importa? O que isso prova? Por esse ponto de vista, quantos casamentos e uniões estáveis seriam anulados?

Invisibilidade do trabalho doméstico

Além do flagrante desrespeito à Rose, essa pergunta deixa claro que para esse advogado (e a gente sabe, para muitas pessoas) o trabalho doméstico realizado na grande maioria das vezes pelas mulheres é invisibilizado. Ainda que Rose contasse com pessoas que trabalhavam como empregadas domésticas, toda a organização da vida da família, dos três filhos, era responsabilidade dela. Os filhos e a mãe moravam em Orlando, na Flórida, enquanto Gugu morava em São Paulo.

Para além de elucidar se eles tinham ou não uma união estável, se ela tem ou não direito à herança, não é possível se calar diante desse ato machista. E a imprensa, que reproduz a notícia porque sabe que é polêmica e gera cliques, engajamento e dinheiro, sem apontar a violência machista dessa pergunta é cúmplice dessa violência. A mesma imprensa que noticiou fartamente a gravidez e o nascimento dos filhos de Rose e Gugu. Há que se ter responsabilidade editorial e fazer, sim, o recorte de gênero no que acontece e é noticiado. E de raça. E de tudo o que nos atravessa enquanto pessoas. Só assim o machismo (e o racismo) estrutural poderá ser combatido.