Vanuza Kaimbé: “Somos os guardiões da vida, quando não mais existirmos, não haverá mais vida na Terra”

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Vanuza Kaimbé – Foto: arquivo pessoal

No mês que marca a resistência indígena, o Portal Firminas conversou com Vanuza Kaimbé, a primeira indígena vacinada contra a COVID-19 no Brasil, e se encantou com sua história de vida, seu compromisso com o cuidar humano e com a missão de seu povo como guardião da vida no planeta.

Ao falar sobre a difícil situação dos seus parentes (palavra que usa para designar todos que pertencem às etnias indígenas), Vanuza é precisa: o governo é inimigo da população indígena.

Aos que acusam os povos indígenas de quererem privilégios, ela esclarece: indígena não é inimigo do progresso, indígena quer o crescimento do Brasil, mas crescimento com responsabilidade, com respeito à Mãe Terra.

Acompanhe essa riqueza de diálogo e junte-se aos guardiões na prece: Nhanderu, nos proteja!

A primeira indígena a tomar a vacina contra a COVID-19 – Foto: reprodução Facebook

Firminas: Como foi ser a indígena escolhida para ser a primeira a tomar a vacina da COVID?

Foi uma alegria muito grande, dei algumas entrevistas que senti vontade de gritar e dizer “Viva a ciência”, “A ciência venceu a Fake News”, um sentimento de gratidão ao SUS, aos profissionais de saúde. Pedi muito a Nhanderu, que é Deus pra nós, para que mostrasse uma luz para que os cientistas viessem a desenvolver um tratamento, uma vacina para salvar vidas.

Firminas: Por que você foi a escolhida?

Não foi uma escolha aleatória, fui escolhida pela minha luta, pela minha dedicação à saúde, eu sou conselheira pela parte da população na Saúde aqui de Guarulhos, antes eu já tinha sido conselheira no município de São Paulo, na UBS do Jardim Keralux, em Ermelino Matarazzo.  Eu sempre fui participativa nas questões sociais, nas lutas. Quando chegou a pandemia no Brasil lutei junto com meus parentes para que todos na Aldeia Multiétnica Filhos Dessa Terra fossem testados, alguns deram positivo, inclusive eu, a gente fez todo um trabalho, ninguém veio a óbito e foi uma luta muito grande ao combate à COVID.

Firminas:  Como a pandemia atingiu a população indígena?

O governo é inimigo da população indígena, não fez nenhum plano emergencial para fechar as aldeias, para proteger os indígenas, para levar suprimento e alimentação. Quem fez isso fomos nós, com ações da sociedade civil e com a Frente Parlamentar da População Indígena, que tem em Brasília e em São Paulo também. Em Brasília Joenia Wapichana, que é deputada federal, entrou com recurso no Supremo cobrando do governo um plano emergencial para a população indígena. Em São Paulo. Chirley Pankará, que é codeputada pelo mandato ativista com Monica Seixas, entrou no Ministério Público cobrando uma ação emergencial para populações indígenas, incluiu a Aldeia Multiétnica Filhos Dessa Terra, cobrou da FUNAI uma ação efetiva. Foi toda uma luta para ter vacina.

Vanuza na Aldeia Multiétnica e em visita à Assembleia Legislativa Fotos: arquivo pessoal

Firminas: Houve uma determinação do STF para vacinação dos povos indígenas…

Sim, no dia 6 de março, às 14h55, o ministro Barroso determinou que se fizesse um plano emergencial para vacinar todos os indígenas, seja em que contexto ele habite, e isso não foi cumprido até hoje em São Paulo. Algumas UBSs (Unidade Básica de Saúde) começaram a vacinar, mas a Secretaria de Saúde não determinou nada ainda. Fizemos um levantamento onde está essa população indígena, onde vive, qual UBS, encaminhamos para a Secretaria Estadual e mesmo assim não se cumpre. É um descaso, nós ainda morremos de doença respiratória e essa doença nos atinge. Dos internados, quem mais morreu no Brasil, em termos percentuais, pertence à população indígena.  Teve um estudo do epidemiologista Pedro Hallal mostrando que a população indígena que vive na periferia tem  5% a mais de chance de contrair de forma grave a Covid. A gente tem que estar todo dia lutando, resistindo, cobrando políticas públicas, garantias de direito. E muito triste ver as leis deste país não serem cumpridas.

Vanuza Kaimbé – Foto: arquivo pessoal

Firminas: Conte um pouca da sua história de vida, o que a trouxe para Guarulhos?

Eu nasci na Aldeia Massacará no município de Euclides da Cunha, no sertão da Bahia e quando criança já dizia que ainda ia morar numa cidade grande, estudar e depois voltar para a Aldeia, não queria casar e ter filhos como as minhas primas, minhas parentes. Com 12 anos sai de casa e fui morar com uma professora em Rodelas, e aos 14, fui morar em Salvador com meus irmãos. Como não achava emprego vim para São Paulo aos 18 anos, em 1988, pensando em trabalhar e estudar.

Trabalhei em casa de família, depois trabalhei com crediário, fui vendedora, o tempo foi passando e eu não me identificava como indígena. Mas aos 30 fui estudar, me tornei técnica de enfermagem e fui trabalhar com a saúde indígena. Eu tinha um paciente tupi, o Gilberto Awa,  e ele sempre me chamava para morar em Guarulhos e me somar à luta com ele. Em 2017 eu vim para formar a Aldeia Multiétnica Filhos Dessa Terra, onde vivo desde a fundação. Venho somando na luta, temos muita demanda, não temos saneamento básico, não temos creches, escolas, agora enfrentamos a pandemia.  

Firminas: Seu nome ancestral é Vanuza Kaimbé?

Meu nome é Vanuza, e eu uso o nome da minha etnia que é Kaimbé. Vanuza Kaimbé, significa agraciada por Deus, significa a esperança, por isso que não mudei de nome, não uso meu nome de batismo, só quando vou assinar algum documento.

“São 521 anos de preconceito de etnocídio, de genocídio, é muita violência que nós sofremos todos os dias”

Vanuza Kaimbé

Firminas: Como é a convivência de diferentes etnias na Aldeia?

Vivemos em torno de 20 famílias, a maioria vem do nordeste. As pessoas pensam que indígena é tudo igual, mas não é. Cada um tem seu modo de vida, têm os trabalhos individuais e os trabalhos coletivos. A gente tem um grupo de WhatsApp, a gente dá bom dia em vários idiomas (risos), porque temos 274 dialetos diferentes, somos 305 povos ainda no Brasil. Aqui na Aldeia gente oscila, no momento temos oito etnias. O Brasil é um dos países mais ricos na diversidade cultural. A convivência aqui é muito boa, fazemos nossos rituais, É um aprendizado, todo dia a gente aprende um pouco.

Firminas: Você é técnica de enfermagem e acaba de se formar em Serviço Social pela PUC-SP, por que essas escolhas?

Eu acredito que foram meus ancestrais que me instruíram para que eu escolhesse essa missão. Eu sempre gostei de cuidar das pessoas. Trabalhei na saúde indígena, em casas de repouso, em home care e ao longo do tempo fui vendo que eu fazia uma investigação com os pacientes, dava orientações, e me falavam que esse é papel da assistente social. Então por que não juntar as duas coisas: cuidados com a humanização à garantia de direitos? Por isso escolhi assistente social e foi uma das melhores decisões que tomei na vida, porque posso transitar nas duas profissões. Eu escolhi por cuidar das pessoas, em especial do meu povo, cuidar para garantia de direitos dos meus parentes – que é como a gente chama os outros indígenas.

Firminas: Ainda encontra muito preconceito nos locais em que trabalha/estuda?

Não é fácil lidar com os estereótipos e com o preconceito. São 521 anos de preconceito, de etnocídio, de genocídio, é muita violência que nós sofremos todos os dias. Muitas vezes falam: você não tem cara de índia. Cara de índia? Como é cara de índia? Você quer encontrar o índio de 1500? A sociedade vem mudando, as características físicas mudam, as misturas raciais , culturais vão mudando não só o indígena. O homem branco, europeu, também sofreu mudanças. O que a gente indígena não sofre mudança é na nossa ancestralidade, na nossa luta para não entrarmos em extinção.

Vanuza Kaimbé na Aldeia Multiétnica Filhos dessa Terra, em Guarulhos

Firminas: O que você espera do futuro? O que gostaria muito de dizer a todos nós?

O que eu espero é que essa pandemia passe, que venham dias melhores, que as pessoas tenham consciência que o voto é importante, que o voto pode destruir a vida, que se nós tivéssemos um governo responsável, comprometido com a saúde, com a educação, com a ciência, nós não estaríamos nesse patamar em que estamos.

Indígena não quer privilégio, indígena não é inimigo do progresso, indígena quer o crescimento do Brasil, mas crescimento com responsabilidade, com respeito à mãe terra.

Quero dizer que nós somos os guardiões da vida, nós temos uma missão ancestral dada pelo Criador que é proteger a vida, e no dia que nós não existirmos mais aqui, não haverá mais vida na Terra, porque somos nós que protegemos a água, as florestas, os animais. Nós queremos viver e queremos viver com respeito e harmonia. Respeito à diversidade.

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