Constituinte no Chile mostra que a revolução será feminista

A nova Constituição chilena está sendo forjada como resultado de protestos em 2019, conhecidos no meio feminista como Maré Violeta

O Chile vive um momento ímpar de transformação social, iniciado desde 2019, por meio de protestos que levaram às ruas movimentos sociais para manifestar sua indignação em relação à situação daquele País. Na multidão, expressivas vozes feministas levantaram questões importantes para as mulheres, não só as chilenas, mas as que estão em todos os lugares do mundo.

Constituinte é resposta aos protestos. Imagem: Fotos Públicas

A resposta para a convulsão social foi a convocação de uma Constituinte, aprovada em plebiscito, para a redação de uma nova Carta Magna. E essa não é a única novidade. A Constituinte é formada por homens e mulheres, de forma paritária, com assentos também reservados para os povos originários. É a primeira vez no mundo que uma Constituinte é realizada com paridade de gênero.

Sarah Lima, professora de Direito Constitucional e doutoranda em Direito Internacional explica que a Constituição de um país é o documento responsável por toda a organização e limitação do poder do Estado, devendo apresentar características consistentes com as da sociedade na qual será inserida.

“Uma democracia paritária é instrumento chave para que os direitos das minorias sejam garantidos. A equidade de gêneros no campo político, assim como o respeito aos direitos indígenas, são pautas de grande relevância em praticamente todos os países da América Latina. Essa composição busca apresentar um retrato mais igualitário da sociedade chilena”, disse Sarah.

Mulheres protestaram contra repressão e exigiram Constituinte. Imagem: Fotos Públicas

Direitos das mulheres

A doutoranda em Direito Internacional Sarah Lima ressalta que a atual Constituinte é uma conquista dos movimentos feministas e de mulheres “que há décadas lutam pela igualdade de gênero e pelo reconhecimento e efetivação dos [seus] direitos”. “Com certeza, servirá de exemplo para muitos países e encorajará muitos outros movimentos de mulheres e demais minorias a exigirem paridade nas decisões políticas”, acrescentou.

Entre as pautas que os movimentos de mulheres e feministas querem incluir na nova Constituição chilena estão igualdade salarial entre homens e mulheres, o fim da violência de gênero e acesso a aborto livre e seguro. Sarah considera que essas pautas são importantes e constam em instrumentos internacionais como ONU, OIT e OEA.

“Igualdade salarial, fim da violência doméstica e o direito ao aborto são reivindicações das mulheres não apenas em nível nacional. Acredito que exista um terreno fértil para a que a igualdade entre homens e mulheres seja reforçada na nova Constituição chilena e, talvez, para a inclusão dos direitos sexuais e reprodutivos em seu texto,” pontuou.

Aborto legal e seguro

Sarah Lima é doutoranda em Direito Internacional. Imagem cedida do acervo pessoal da entrevistada

Porém, mesmo que haja abertura para que algumas pautas sejam discutidas e até mesmo a inclusão de direitos sexuais e reprodutivos na nova Carta Magna facilite o reconhecimento do aborto legal e seguro como um direito das mulheres, o tema é considerado sensível pela professora constitucionalista. “Por tratar-se de um tema mais sensível e cercado de tabus, nos resta aguardar. Sem dúvidas, daria muita força a todos os movimentos de mulheres da América Latina e influenciaria outros países a descriminalizar o aborto, ou flexibilizar a sua ocorrência”, ponderou Sarah.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, uma mulher morre a cada dois dias no Brasil por aborto inseguro. A situação não é muito diferente na América Latina, em países onde não existe política pública nesse sentido. O caso mais recente de país latino-americano que legalizou o aborto é o da Argentina, no final do ano passado, após massivos protestos feministas. Atualmente, além da Argentina, o aborto é legalizado no Uruguai, em Cuba, em Porto Rico, na Guiana e na Guiana Francesa.

Povo organizado

Para Sarah, a nova Constituição pode fortalecer a democracia chilena e a organização da população foi essencial para chegar a esse resultado. “As manifestações de 2019 foram cruciais para que essa mudança acontecesse. Um povo organizado e com coragem para mostrar sua voz e sua força pode conquistar grandes objetivos. A Constituição pinochetista não contribuía para os avanços almejados no campo social, pois praticamente engessava aquela estrutura social das décadas de 70/80, apesar de ocorrerem progressos no campo econômico”, analisou.

A solidariedade ao Chile veio de vários países, inclusive do Brasil. Imagem: Fotos Públicas

A professora de Direito Constitucional também lembrou que, durante a eleição da Constituinte, cerca de 20% dos escolhidos pela população eram independentes, pessoas não-militantes, desvinculadas dos partidos políticos tradicionais chilenos. “Acredito que isso representa uma crise da representatividade por meio dos partidos tradicionais, ou seja, existe uma descrença no trabalho e/ou ideais dos partidos tradicionais de direita e esquerda. Podemos verificar isso aqui no Brasil e em outros países da América Latina”, comparou Sarah.

De acordo com ela, esse cenário pode ser um indicativo para a mudança da estrutura política da sociedade chilena, chamando atenção dos partidos tradicionais para as reais necessidades e exigências do povo. Porém, ela chama atenção para o fato de que essa pode ser uma armadilha.

“Por outro lado, é possível também o fortalecimento de figuras esdrúxulas, que não tendo compromisso com determinados partidos, seguem seus próprios interesses e tentam demonstrar ao povo que sabem o caminho para mudar o rumo do país. Creio que assistimos a algo parecido no Brasil”, alertou.

Santiago comunista

Na mesma eleição da Constituinte, a capital do Chile, Santiago, escolheu sua nova prefeita, Iraci Hassler, economista, filha de brasileira e militante comunista. O resultado trouxe surpresa à direita chilena.

Sarah considera que o Brasil e outros Países estão vivendo uma nova transformação, após um período em que a direita conseguiu ascender ao Poder em vários lugares. “Eleitores estão buscando por candidatos mais envolvidos com causas sociais, combate às desigualdades, proteção do meio ambiente. A pandemia do coronavírus impulsionou não só as desigualdades sociais e a vulnerabilidade de muitos grupos, como mostrou a muitos cidadãos quais devem ser as verdadeiras prioridades do comandante de uma nação”, concluiu.

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